terça-feira, 9 de março de 2021

Goldsworthy L. Dickinson II

E. M. Forster & Goldie


dward Morgan Forster conheceu Goldsworthy Lowes Dickinson durante um almoço em 1898, quando era estudante de graduação no King’s College, Cambridge. Esse primeiro encontro não despertou grande interesse ou entusiasmo em nenhum dos dois, que àquela altura tinham uma diferença de idade de dezessete anos. Forster nos conta sobre esta ocasião no capítulo 10 da biografia, The Socratic Method (1893-1914):

"Eu o conheci em 1898. Um amigo de seu pai e de minha tia [Laura Forster] pediu-lhe que fosse gentil, então ele me convidou para almoçar. Comemos costeletas de Winchester, uma espécie de rissole alongado em que ele estava viciado, mas não consigo me lembrar de nada sobre a conversa, e provavelmente não houve uma. As impressões ficaram tão misturadas; mas me lembro dele mais triste e mais velho do que parecia quinze anos depois. Ele não sabia nada sobre mim - não havia nada para saber - e eu nunca tinha ouvido falar dele. Seus quartos ficavam na escada H de Gibbs, andar térreo - a escada mais próxima da capela - e ficamos sentados sozinhos na grande sala da frente comendo em silêncio as costeletas e tomando o molho marrom-avermelhado em que estavam. A comida não estava tão boa quanto nos últimos anos, o anfitrião mais tímido, o convidado mais tímido ainda, e eu parti pouco atraente e pouco atraído."


No entanto, poucas semanas depois, ao devolver uma peça emprestada por Dickinson e admitir que não gostara da obra, Forster recebeu como resposta inicial um charmoso sorriso. Continuemos com suas próprias palavras ainda no capítulo 10: 

"Algumas semanas depois, pedi a ele que me emprestasse uma peça que estava em alta entre meus colegas calouros. Esqueci seu nome. Ele me entregou melancolicamente e, quando a levei de volta, me perguntou o que eu achara dela. Respondi nervosamente que temia não tê-la achado muito boa. Seu rosto se iluminou. 'Não, claro que não é boa', disse ele. Esse iluminar do rosto era algo a se observar. [...] O charme, na maioria dos homens e em quase todas as mulheres, é uma decoração. Pertence genuinamente a eles, como pode acontecer com uma boa aparência, mas fica na superfície e pode desaparecer. O charme em Dickinson era estrutural. Penetrava e sustentava tudo o que ele fazia, permaneceu até a velhice, e eu o vi pela primeira vez naquela tarde do final do século passado, quando ele tinha apenas trinta e cinco anos e o despertei conseguindo ser honesto em uma frivolidade. O 'acender' realmente pertenceu a uma ocasião maior do que esta - a entrada no quarto de um amigo. Então, ele emergia de sua vida interior com um sorriso, o que o tornava indescritivelmente belo naquele momento."


O sorriso de Dickinson, o segundo da direita para a esquerda, registrado por Lady Ottoline Morrell em 1922.
Foto: National Portrait Gallery, Londres.


Antes daquele ano terminar, a proximidade entre ambos já estava se desenvolvendo gradualmente, vindo a consolidar-se, de fato, cerca de uma década depois. 

"Eu não o vi muito enquanto era estudante de graduação, e quando no meu quarto ano mudei dos clássicos para história, planejei ir até ele para estudos, mas fui censurado por Oscar Browning, que disse: 'Você nunca vem me ver, você deve vir até mim.' Então, uma vez por quinzena eu li em voz alta sobre Wallenstein ou Luís XIV para o lenço que cobria o rosto de O. B., e o poder de Dickinson para ensinar permaneceu desconhecido para mim, exceto pelo que ouvi de outras pessoas. Eu pertencia à sua 'Discussion Society', no entanto. Ele a fundou em 1900 como resultado de algumas palestras populares sobre filosofia que haviam sido proferidas por McTaggart. [...] Como todas as pessoas sensíveis, ele se comportava de maneira diferente com seus diferentes amigos e, devido às minhas limitações, nos restringíamos a assuntos pessoais, literatura e fofoca quando conversávamos. Mas pude ver que tudo se ligava, que a amizade tinha a ver com a política, e a filosofia com as duas, e que se ele também tivesse suas limitações era, dentro delas, completo. Da maioria de nós, isso não pode ser dito."  - capítulo 10, The Socratic Method (1893-1914)


Ainda em 1910, Forster registrou em seu diário algumas palavras sobre a evolução da amizade:

"[Dickinson] gosta de mim mais do que antes, eu acho e espero" [..] "Aproximando-se de uma amizade verdadeira."

Ambos tiveram experiências semelhantes ao longo de suas vidas que, muito provavelmente, contribuíram para o florescer da sólida relação. Quando crianças, padeceram sob bullying moral no período escolar: Forster em The Grange, uma pequena escola em Stevenage, no Hertfordshire, frequentada por um breve período na primavera de 1893, e Dickinson principalmente em Beomonds, na cidade de Chertsey. Ele, inclusive, certa vez levou Forster para conhecer este estabelecimento de ensino, transformado à epoca numa escola para meninas. 


Cambridge, aqui por volta de 1896, era uma incógnita para os jovens Dickinson e Forster quando ingressaram na universidade. Foto: The Print Collector via Getty Images. 


O ingresso na Universidade de Cambridge representou para ambos o bálsamo da partida da escola pública, apesar de no princípio não haver uma consciência real disso. Era tudo muito novo para os dois jovens, como Forster deixa claro no capítulo 06, Cambridge (1881-1884):

"Discretamente e indiferentemente, ele iniciou uma conexão que durou mais de cinquenta anos. Ele não tinha ideia do que Cambridge significava - e eu me lembro de ter tido a mesma falta de compreensão sobre o lugar quando chegou minha vez de ir para lá. Parece bom demais para ser real. Que a escola pública não é infinita e eterna, que há algo mais atraente na vida do que o trabalho em equipe e mais vital do que o críquete, que firmeza, autocomplacência e fatuidade não compõem toda a armadura do homem, que as aulas podem ter a ver com lazer e gramática com literatura - é difícil para um menino inexperiente compreender verdades tão revolucionárias, ou perceber que a liberdade às vezes pode ser conquistada saindo por uma porta aberta."


Em suas respectivas épocas de graduação, eles integraram a Cambridge Conversazione Society. Mais conhecida como Apostles, consistia num grupo de estudantes que debatia temas ligados à intelectualidade. Certa vez, por volta de 1906, Forster chocou Dickinson ao observar, meio sério, que pela primeira vez, no fim de semana anterior, ele realmente se divertira em uma reunião dos Apostles

"Que confissão!" exclamou Dickinson. "O que você teve? Instrução? Edificação? Fadiga? Perplexidade?". 



(clique para ampliar)

Atas de duas reuniões dos Apostles, em 06 de junho de 1885 e 05 de maio de 1901. Possivelmente as primeiras de Dickinson e Forster como moderadores, respectivamente. | Imagens: King's College Archive Centre. 


Posteriormente, muitos dos que passaram pelo Apostles constituíram o ilustre Bloomsbury Group, do qual ambos também fizeram parte, sendo que Dickinson teve uma conexão mais profunda e vigorosa com o círculo de artistas e intelectuais. 

A orientação sexual compartilhada também não pode deixar de ser mencionada. Nenhum dos dois viveu abertamente sua homossexualidade, levando-se em consideração as consequências sociais e legais da época. Amigos próximos foram alvos de suas paixões: enquanto Forster se apaixonou platonicamente pelo indiano Syed Ross Masood, a quem dedicou A Passage to India, Dickinson manteve um relacionamento com o pintor Roger Fry, que conhecera na faculdade 
de medicina. Provavelmente bissexual, Fry casou-se em 1896, o que pôs fim à relação íntima, porém, a ligação foi mantida. Compartilhavam vários amigos e foi Dickinson quem apresentou Forster ao casal que inspirou o romance póstumo Maurice: o poeta e filósofo Edward Carpenter, que era lido por Forster com entusiamo, e seu companheiro George Merrill. Igualmente por seu intermédio, o escritor conheceu Roger Fry, durante sua passagem pelo Apostles, e o economista e teórico John Maynard Keynes, que integrava a Discussion Society


     Syed Ross Masood e Roger Fry.
Amigos e amores de Forster e Dickinson, respectivamente.
Fotos: King's College Archive Centre.


Ao longo dos anos, a relação de Forster e Dickinson foi marcada por muitos encontros, trocas de correspondências, questões de trabalho e viagens. Em suas cartas, Forster relatava ao amigo suas conquistas e frustrações, como quando em dezembro de 1901, contou sobre o seu descontentamento com Nottingham Lace, sua primeira tentativa de escrever um romance, que acabou sendo abandonada em março do ano seguinte. Foi também em carta a Dickinson, de 12 de junho de 1907, que ele lamentou a recepção do público a The Longest Journey, desapontado que tão poucos leitores pareciam achar os personagens Stephen, Ansell e Rickie realmente simpáticos. 

O escritor foi um dos primeiros a colaborar com a revista mensal Independent Review, fundada por Dickinson e outras figuras de Cambridge em 1903. O artigo Macolnia Shops, publicado em novembro daquele ano, foi só o primeiro dos seus vários trabalhos editados no periódico, incluindo aí os contos The Road from Colonus, The Story of a Panic, The Other Side of the Hedge e The Eternal Moment e ainda a sua primeira crítica literária, Literary Eccentrics: A Review, veiculada em outubro de 1906. 

Em 1904, Dickinson encomendou a Forster uma introdução e notas para uma nova edição de Eneida, de Virgílio, que, juntamente com Hugh Owen Meredith, estava editando para a série Temple Greek and Latin Classics, do escritor e professor Edward Joseph Dent. Em março, após aceitar a missão, Forster começou a trabalhar na incumbência, concluindo-a em junho de 1905. O livro foi publicado em julho do ano seguinte. 

Os amigos sempre trocavam opiniões sobre os trabalhos que escreviam. Enquanto Forster, em carta, elogiou A Modern Symposium, Dickinson não apreciou The Heart of Bosnia, uma peça que Forster chegou a concluir, mas jamais publicou. Em meados de dezembro de 1913, ele teve uma reação fortemente desfavorável a alguns contos eróticos que Forster havia concebido, curiosamente confundindo com fragmentos de Maurice, que estava sendo escrito naquele mesmo período. A reprovação foi tão violenta que Forster queimou as histórias. 

Página de cópia datilografada do conto The Life to Come (1922).
Imagem King's College Archive Centre.
(clique e abra em outra guia para ampliar)
Tal situação acabou interrompendo um fluxo criativo que vinha beneficiando a escrita de Maurice, porém uma posterior visita a Carpenter e Merril liquidou a adversidade ao revigorar seu entusiasmo na escrita. Falando no romance póstumo, Dickinson teve a oportunidade de ler a obra um ano depois. Admirou-o enormemente, mas embora comovido, ficou descontente com a inclusão do guarda-caças Alec Scudder.

Quando escreveu o "violento e totalmente impublicável" conto The Life to Come em 1922, Forster foi mais cauteloso: 

"Posso mostrar a Goldie, mas há mais sensualidade na minha composição do que na dele, e isso pode perturbá-lo." 

Naquele momento, apenas os amigos Florence Barger e Siegfried Sassoon eram confiáveis para ver aquela ficção de teor homossexual. Evidentemente, Dickinson também tinha palavras elogiosas para a produção literária do amigo. Ele enalteceu efusivamente o primeiro livro publicado de Forster, Where Angels Fear to Tread, e quando leu A Passage to India, não poupou aplausos ao seu criador: 


The Shiffolds
2 de junho de 1924

Caro Morgan,

Terminei seu livro agora. Acho tão bom que não tenho muito o que falar sobre isso. Pois é sempre mais fácil apontar buracos. O tema - a incompatibilidade de indianos e ingleses - é feito como talvez só você pudesse fazer - com o poder de compreender os dois lados. Mas então existem todos os tipos de sugestões por trás; e tenho a sensação - rara para mim na minha idade - de que você ergueu uma nova ponta do véu. O que você vê por trás disso é bastante inquietante; mas não podemos evitá-lo por esse motivo; pelo menos eu não quero. [...]  Aziz eu acho um triunfo - tão vivo e tão consistentemente inconsistente... Você deve saber bem agora, e sem dúvida já sabia, o ponto crucial da dúvida - o que aconteceu nas cavernas? Por que não podemos saber? Por que não podemos saber o tempo todo? Espero, entretanto, que você tenha um bom motivo para lidar com isso e não me importo muito. Mais importante é que, enquanto em seus outros livros seu tipo de visão dupla estremece - este mundo e um mundo ou mundos além e atrás - aqui tudo se junta. Não se sabe o destino dos livros. Mas alguém poderia pensar que este deveria ser um clássico sobre o fato estranho e trágico da história e da vida chamado Índia. De qualquer forma, você sentirá que conseguiu, uma satisfação que permanecerá por baixo da insatisfação que nunca cessará, que pertence à vida, e é a vida, se é que se vive. [...]


Seu,
G. L. D.


O culto e estimado Dickinson aparentemente não foi inspiração para nenhum personagem criado por Forster, mas suas três irmãs, May, Hester e Janet, foram os modelos para Margaret e Helen Schlegel de Howards End, o que foi confirmado em entrevista à The Paris Review em 1952. Além disso, o lar dos Dickinson em All Souls Place, em Londres, também foi fonte de inspiração para a casa dos Schlegel. Foi lá que o escritor conheceu o já idoso Lowes Cato, pai do amigo Goldie, em seus últimos anos de vida. 

Os dissabores e os prazeres de suas relações românticas também eram tópicos de conversas. Ao passo que Forster, por exemplo, compartilhava detalhes sobre seu relacionamento com o egípcio Mohammed el Adl, Dickinson geralmente tinha desilusões e casos não correspondidos para dividir. Não que Forster também não os tivesse, mas com Dickinson isso parecia ser mais a regra. Exatamente por isso, Forster adotou um tom mais amável e contido quando falava sobre seu amado Mohammed para o amigo usualmente frustrado com o amor. 

Viagens pela Europa, Ásia e pela própria Inglaterra fizeram parte do curso de sua amizade. Em novembro de 1912, por exemplo, os amigos visitaram as cidades de Lahore e Peshawar, no Paquistão. Também fizeram passeio turístico ao Taj Mahal, na Índia, antes de partirem para uma breve estada na cidade de Gwalior. Foi neste país, numa noite de interação com militares num regimento onde estavam hospedados, que Forster enxergou Dickinson pela primeira vez como "uma figura sólida, que tinha seu próprio lugar no mundo e o mantinha com firmeza". "Este é o momento em que começo a usá-lo como uma pedra de toque e a condenar aqueles que não o apreciam", assevera ele no capítulo 11 da biografia, America, India, China

Em 01 de setembro de 1911, Forster se encontrou com Dickinson e suas três irmãs nos Lagos Italianos. Os dois amigos fizeram longa e agradável caminhada para o oeste da comuna de Iseo, com Dickinson observando que, apenas em terras altas como aquelas, a humanidade sobreviveria no caso de uma grande guerra. Dez anos antes, Dickinson tinha sido um dos calorosos incentivadores da primeira viagem de Forster à Itália, país que teria vital importância em sua vida e obra. 


Ondas batendo em um hotel à beira-mar em Lyme Regis (1937). | Foto: Keystone-France / Gamma-Rapho via Getty Images.


Na velha Inglaterra, um dos destinos foi a cidade de Lyme Regis, no condado de Dorset. Na biografia, Forster nos conta sobre um desses momentos:

"Assim que a guerra terminou, o ânimo de Dickinson melhorou. As pessoas que ele mais amava estavam de volta, e a Liga das Nações parecia começar bem em Genebra. Parei com ele em Lyme Regis na primavera de 1919. Não nos encontrávamos há três anos, então havia muito a dizer. Ele parecia mais velho e desgastado, mas estava alegre e animado, fazíamos longas caminhadas, reverências a Jane Austen, jogávamos xadrez no mesmo nível ruim e piquet sob regras conflitantes. Diz-se que ele foi o pior jogador de bridge do mundo. Alguém pode aludir a piadas impróprias em um livro de memórias? Várias foram feitas. O mundo parecia se acomodar em sua poltrona perdida por um momento. Minhas lembranças de Lyme Regis são um tanto vagas, e é possível exercitar as próprias memórias em uma consistência que os fatos não justificam. Ainda assim, a impressão é de felicidade, esperança, nuvens se dissipando." - capítulo 12, The War and the League (1914-1926).


Dois anos depois, em fevereiro de 1921, ele foi passar férias com o amigo, novamente em Lyme Regis. O momento foi descrito para o escritor Forrest Reid em carta de 17 de fevereiro: 

"Estou com Lowes Dickinson, que esqueceu a Liga das Nações, o Fundo de Ajuda da Universidade de Viena, a fome na China, os franceses na Síria, a depreciação do Marco, o linchamento dos negros na América, o despovoamento das ilhas do Mar do Sul, e a inquietação na Irlanda por um tempo, e senta-se com um boné de mandarim traduzindo Fausto com satisfação e rapidez. Tudo é paz e o cinza perolado, e o gato e o cachorro, ambos fêmeas, deitam-se para dormir nos braços um do outro ou sentam-se na parada deserta e observam as gaivotas."


Durante a Primeira Guerra Mundial, Forster fez o possível para consolar o amigo durante o conflito. Dickinson atravessou aqueles anos em profundo desespero e tristeza e recebia cartas com palavras de conforto e esperança de Forster, que se encontrava em Alexandria, no Egito, servindo como voluntário na Cruz Vermelha. A sua fidelidade a Dickinson também pode ser ilustrada de forma evidente por um episódio ocorrido em 1921. Em março daquele ano, o poeta e romancista Rabindranath Tagore fez ataques a Dickinson numa edição da revista Modern Review. Forster logo se dedicou a escrever uma resposta à altura para defender o amigo, a despeito do periódico se recusar a publicá-la. Meses depois, ele ainda estava preocupado com os ataques, tendo recebido de volta o seu protesto enviado à revista. 

Forster escreveu e publicou algumas críticas de trabalhos de Dickinson. Pilgrim’s Progress é o título de uma crítica de The Magic Flute (1920), editada em 1921 no jornal Daily News. Já em 1930, emitiu seu parecer sobre Points of View, uma série de transmissões radiofônicas encabeçadas por Dickinson, Dean Inge, H. G. Wells, J. B. S. Haldane e Sir Oliver Lodge. A Broadcast Debate saiu em 1930 no jornal político Nation and Athenaeum.  


Uma visão de West Hackhurst em 1906. | Foto: King's College Archive Centre. 

Dickinson foi um visitante recorrente em West Hackhurst, na vila de Abbinger Hammer, Surrey, onde a mãe de Forster morava e ele mesmo passava temporadas. Chegavam a passar mais de dez dias juntos na propriedade, aproveitando férias, feriados e finais de semana, e Forster sentia-se feliz ao convidar outros amigos para conhecê-lo nessas ocasiões. 

Sua última visita foi em julho de 1932. Algum tempo depois, ele deu entrada no Guy's Hospital, em Londres, onde foi submetido à cirurgia de próstata cujas complicações o matariam. Consciente dos riscos que corria, ele havia se encontrado com Forster na capital, pouco antes naquele verão, para entregar-lhe um pacote com documentos importantes: a autobiografia que acabara de concluir e cartas a serem entregues às suas irmãs no caso de sua morte.

Forster o visitou no hospital em 02 de agosto, um dia antes do amigo partir. Na ocasião, sentou-se ao lado do paciente, que apesar de fraco, estava alegre, lúcido e se recuperando muito bem. 

"[...] Ele me escreveu um pouco antes que não sentia medo da morte, apenas uma espécie de excitação, mas uma dor terrível. Tudo parecia estar indo bem, ele não sentia nenhum desconforto excessivo e planejava passar a convalescença com os Trevelyan e Elliott Felkin. O que quer que ele possa ter sentido em junho, ele não tinha dúvidas agora, sua família e amigos também não. Estive com ele na terça; Na noite seguinte, recebi a notícia por intermédio de Ferdinand Schiller e a princípio não pude acreditar. Ainda há algo irreal nisso, provavelmente porque ele nunca se fingiu de inválido. Ele estava principalmente ocupado em nos poupar problemas e em poupar nossos sentimentos. Estranhamente, ele conseguiu. Um caráter com sua força consegue sustentar aqueles que se agarram a ele e eu tenho 'pensado' mais em mortes de pessoas que amei muito menos. Talvez ele nos tenha transmitido a impressão que tinha recebido com a morte de sua irmã Janet. Não houve autoconsciência ou cinismo em sua partida, nenhuma sentimentalidade e nenhuma 'mensagem'; não exigia um tom de voz especial porque ele nunca havia usado um. No entanto, não era pagão, a menos que a música dos sacerdotes de The Magic Flute pudesse receber esse nome. Isso não sugeria que ele havia se tornado um com o universo ou que havia partido para sempre." - capítulo 15, The Last Months June - August 1932.


Em carta de 24 de agosto de 1932 a Malcolm Darling, que conhecia Dickinson desde os tempos de graduação em Cambridge, o escritor expressa seus sentimentos veementes pelo amigo de longa data:

"Quem não vai sentir falta dele? A Sra. Newman, sua camareira, disse: 'Ele foi o melhor homem que já existiu', e eu escreveria isso em seu túmulo, se ele precisasse de um."


Lytton Strachey e Goldsworthy Lowes Dickinson faleceram com sete meses de diferença. Na foto, eles estão acompanhados de Virginia Woolf em Garsington Manor, Oxfordshire, em 1923. | Foto: Lady Ottoline Morrell / National Portrait Gallery, Londres.


A morte do querido Goldie somou-se à uma série de perdas recentes: Edward Carpenter em 1929, D. H. Lawrence em 1930, Lytton Strachey e Dora Carrington poucos meses antes de Dickinson... Abalado e angustiado, Forster ajudou a organizar os serviços memoriais na capela do King's College, ao lado do Gibbs Building, onde Dickinson morara. A missa ocorreu no sábado, 06 de agosto, data em que ele completaria 70 anos. Forster estava acompanhado de seu amante Bob Buckingham, quase literalmente apoiando seu corpo frágil no ombro largo do jovem. Ele não esperava, mas um outro golpe estava a caminho: Bob voltou-se para ele e informou-lhe que muito em breve iria se casar com May Hockey, que estava grávida. 

Além de um breve texto de homenagem veiculado no jornal The Times três dias após a morte, Forster também publicou um tributo na revista Spectator em 13 de agosto. G. L. Dickinson: A Tribute começa da seguinte maneira:

"Homenagens são coisas vazias, mas quando alguém conhece um homem há mais de trinta anos e o considera grande, algo tem que ser feito. Grande? Esta é claramente a palavra errada para Lowes Dickinson, sugere inacessibilidade e o poder de fazer os outros se sentirem pequenos, enquanto ele tinha o poder de trazer as pessoas para fora. Enquanto estavam com ele, eram felizes e divertidas. Quando o deixavam, descobriam que ele havia estendido sua simpatia e exercitado sua inteligência, de modo que a terra e o universo se tornassem lugares maiores."


No mês seguinte, o escritor começou a releitura de uma das obras do amigo que mais apreciava, The Magic Flute, e seguiram-se transmissões suas na BBC Radio sobre a trajetória e obra de Dickinson. A associação com sua vida e legado teve continuidade nos anos seguintes com a concepção da biografia, é claro, mas também com a elaboração de prefácios, introduções e comentários em reedições dos livros do amigo e em outras publicações. Forster, por exemplo, escreveu prefácios e introduções para os relançamentos de Letters from John Chinaman (em 1945) e The Greek View of Life (em 1957), além de ter publicado comentários sobre A Modern Symposium na revista The Listener em 1956.

No outono de 1935, o escritor mais uma vez vivenciou experiência semelhante a que o amigo Dickinson tinha passado em vida. Ele teve que se submeter a uma cirurgia de próstata, após sofrer por dois anos com um problema de bexiga e fortes dores de cabeça. Sua alarmista mãe estava convencida de que ele não sobreviveria à operação e ele, lembrando-se do desfecho de Dickinson, estava inclinado a achar o mesmo. A cirurgia foi um sucesso e o alívio suplantou os temores. 

Dickinson fotografado por Walter Stoneman em 1931, um ano
antes de sua morte. | Foto: National Portrait Gallery, Londres.
Não é excessivo afirmar que a amizade de E. M. Forster com Goldsworthy Lowes Dickinson foi uma das mais importantes de sua vida. O filósofo e humanista foi uma das influências mais formativas para o escritor no que diz respeito à ética e ao ideal grego e nele Forster encontrou o adulto mais parecido consigo em temperamento. 

No salão de jantar do King's College, conhecido apenas como Hall, há - ou haviam - um retrato de Forster e outro de Dickinson, lado a lado, na parede de uma das extremidades do icônico refeitório. Já se encontravam lá quando Forster ainda estava vivo e ele considerava aquilo uma grande gentileza da parte do King's. 

Em A Reading of E. M. Forster (1979), Glen Cavaliero resume bem a notória conexão entre os amigos:

"Dickinson era a quintessência de um certo tipo de professor de Cambridge, e certamente constituiu um Forsterian ideal. 

Tímido, erudito, discreto homossexual, de coração caloroso, mas com uma mente afiada, ele incorporava qualidades que, no devido tempo, passaram a ser associadas com o próprio Forster." 


Mas terminemos por enquanto com palavras do próprio Forster, registradas em seu Locked Diary em 31 de dezembro de 1914:

"Eu o atraí para mim; é estranho exercer poder sobre alguém que se respeita, e cansativamente o suficiente, isso não aumenta o respeito. A guerra o estilhaçou e inspirou pouco mais que uma lamúria. Ele se sente velho. - Mesmo assim, estamos finalmente numa base de camaradagem. Maurice fez isso."


A referência a Maurice demonstra que as interações e impressões trocadas a respeito do romance foram essenciais para construir os alicerces sólidos da sua amizade. A despeito de tantos momentos compartilhados, lamentavelmente não localizei uma fotografia sequer dos dois juntos. 


Semana G. L. D.
Próximo post: A concepção do livro.

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