A concepção do livro
or que escrever um livro de memórias de Goldsworthy Lowes Dickinson? Esta é a pergunta que Mefistófeles, personagem medieval conhecido como uma das encarnações do mal, faz a Forster num curioso diálogo socrático no epílogo da biografia.
O escritor responde que seu amigo "era amado, carinhoso, altruísta, inteligente, espirituoso, charmoso, inspirador” e outros questionamentos sorrateiros se sucedem. A despeito do honesto reconhecimento de que Dickinson não teve uma vida dramática ou movimentada, o que prevalece são as últimas palavras de Forster na obra:
"Essas qualidades em Goldie foram fundidas em uma criatura tão incomum que ninguém conhecido na humanidade ou na história se parece com ela, e não existem palavras para defini-la. Ele era um ser indescritivelmente raro, era raro sem ser enigmático, era raro na única direção que parecia infinita: a direção do Coro Místico. Ele não apenas aumentou nossa experiência: ele nos deixou mais alertas para o que ainda não foi experimentado e mais esperançosos sobre os outros homens porque ele viveu. E uma biografia dele, se tivesse sucesso, se pareceria com ele; alcançaria o inatingível, expressaria o inexprimível, tornaria a passagem na eternidade. Eu fiz isso? Das Unbeschreibliche hier ist's getan? Não. E talvez isso só pudesse ser feito através da música. Mas foi isso que me atraiu."
Forster jamais havia se debruçado de forma tão vigorosa sobre um trabalho biográfico. O máximo haviam sido breves ensaios memorialistas. Poderíamos saber muito mais sobre o processo de concepção da obra se não fosse por um curioso detalhe. Por volta de 16 de janeiro de 1931, ele perdeu a chave de seu diário particular. Esse parece ter sido o motivo que estava faltando para os registros serem negligenciados de vez, pois a manutenção do diário, que já era inconstante, foi totalmente interrompida por quatro anos. A chave só apareceu novamente em 7 de outubro de 1934 e o caderno foi atualizado apenas com um breve resumo do período que não havia sido registrado, em que Forster menciona sua avaliação da biografia, já publicada àquela altura:
"Eu sou um orador pior do que costumava ser e não sou um criador. Mas um bom jornalista e meu livro sobre Goldie foi bom, sempre pensei que seria. Não vou fazer um livro sobre Roger Fry."
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Goldsworthy Lowes Dickinson, por Roger Fry (1893) Imagem: National Portrait Gallery, Londres. |
Dickinson parecia saber que Forster faria um bom trabalho se decidisse biografá-lo. Ele indicou o amigo como seu executor literário e legou-lhe uma série de matérias autobiográficas que havia escrito durante os últimos doze anos de sua vida. O escritor inicia o prefácio da obra fazendo referência a esse material:
"Ele me disse que não seria publicado na íntegra, mas poderia ser usado a meu critério, portanto, usei-o ao escrever este livro. Será referido sob o título geral de Recollections; na verdade, todas as citações podem ser assumidas como provenientes dessa fonte, quando não são atribuídas de outra forma.
Também trabalhei parte de Recollections na substância da narrativa; por exemplo, os detalhes sobre sua infância e seus vários estados de espírito não são palpites meus, mas dependem de sua autoridade."
Na introdução de Goldsworthy Lowes Dickinson and Related Writings (1973), o editor Oliver Stallybrass destaca o trecho "poderia ser usado a meu critério" como um indício de que Forster e Dickinson possivelmente discutiram a publicação da biografia, mas não há evidência inconteste a respeito disso.
A ideia da biografia contou com o apoio e autorização das duas irmãs de Dickinson, May e Hester - Janet havia falecido em 1924. No prefácio da obra, o primeiro agradecimento do autor é dedicado a elas, acompanhado da afirmativa de que a sua aprovação e ajuda foram fundamentais para o projeto. Com o aval familiar, o escritor pôde publicar, em 10 de novembro de 1932, uma carta em que anunciava a intenção de escrever a biografia de Goldsworthy Lowes Dickinson e pedia o empréstimo de correspondências que pudessem contribuir para a obra. O pedido, publicado primeiramente no Times Literary Supplement e dois dias depois na revista New Statesman, obteve um retorno generoso, com muitas pessoas cedendo cartas escritas por Dickinson.
Quatro dias antes de assinar o contrato com a editora Edward Arnold, Forster enviou uma carta ao seu editor, Brian Fagan, na qual deixava claro um desejo legítimo:
"Eu quero que o livro seja anunciado e 'promovido', de forma adequada ao seu personagem. Tenho a impressão de que Dickinson, devido às suas transmissões no rádio, estava à beira de um público muito mais amplo e quero que ele os alcance."
O contrato foi assinado em 15 de dezembro de 1932 e, diferentemente dos acordos anteriores, daquela vez havia uma data de conclusão previamente estabelecida: 30 de junho de 1933, com publicação programada para o outono. Posteriormente, o prazo foi estendido por seis meses. No final de dezembro, ele estava acomodado nos aposentos do falecido amigo no Gibb's Building, lendo e analisando as cartas de Dickinson - que além de quase ilegíveis, eram pouco estimulantes. Cercado por pilhas de correspondências, livros e papéis, preparava-se para começar a escrever a obra.
O Gibbs Building em 1916, onde Dickinson viveu grande parte de sua vida no King's College, Cambridge. | Foto: King's College Archive Centre.
A J. R. Ackerley, ele relatou em 12 de janeiro de 1933:
"Com placidez, continuo a ler as cartas de Goldie para May, que são ainda mais pobres do que a maioria de suas correspondências, e a ouvi-lo dizer 'Realmente, meu caro Morgan, você deveria ter que fazer isso'".
Aquela foi não foi a única vez que Forster teve a ilusão de escutar Dickinson falando diretamente com ele durante o progresso do trabalho. Em meados de janeiro de 1933, encorajado e feliz, iniciou o planejamento e redação da biografia, o que iria ocupar grande parte daquele ano. Devotou-se ao trabalho com afinco e agilidade, entrevistando amigos de Dickinson em fevereiro e dispondo da imensa ajuda de R. E. Balfour, membro do King's College que selecionou a bibliografia consultada.
Em carta ao amigo escritor Christopher Isherwood em 01 de abril de 1933, Forster metaforizou aquela experiência. Diretamente de West Hackhurst, ele escreveu:
"Faz tanto tempo que escrevi um livro que parece que estou abrindo uma tumba."
Quando comparada ao ano anterior, sua produção literária paralela em 1933 foi sensivelmente reduzida para que a maior parte do tempo fosse dedicada à biografia. Se em 1932, ele publicou um total de 24 trabalhos, em 1933 foram apenas três artigos, duas resenhas e nenhuma transmissão de rádio. Forster sempre passava por ciclos de altos e baixos durante os processos de concepção de suas obras e com a primeira biografia que escreveu não foi diferente. Porém, desta vez a montanha-russa de emoções parece ter sido menos impetuosa, visto que a maioria das referências ao trabalho encontradas em cartas é de satisfação e prazer. À amiga Virginia Woolf, ele afirmou que o processo o fez amar Dickinson ainda mais e que estava acontecendo muito mais rápido do que havia previsto.
Vejamos alguns trechos de correspondências que fazem referência ao processo de concepção da obra, apresentados na já citada introdução de Oliver Stallybrass:
E. M. Forster criando (imagem apenas ilustrativa). | Fotos: Kurt Hutton / Getty Images.
"Tenho a impressão de que vou escrever o livro com bastante alegria - de qualquer forma, continuo anotando frases que me fazem sorrir." [Carta para J. R. Ackerley, datada de 10 de janeiro de 1933];
"Mas devo parar e continuar com o livro de Goldie, que considero mais interessante e trabalhoso do que esperava." [Carta para Florence Barger, datada de 9 de fevereiro de 1933]
"Devo terminar o livro de memórias de Lowes Dickinson. Qual será o seu mérito, eu não sei, suponho que as pessoas vão rir disso por ser uma coisa acadêmica sentimental, e então o ignorem. Mas eu gosto de fazê-lo e continuo pegando coisas que parecem vir do G. L. D. e não de mim, e me agradam." [Carta para Forrest Reid, datada de 4 de julho de 1933]
“Tenho me sentido incomumente inquieto e insatisfeito... Gostaria de poder terminar o livro de memórias de Goldie Dickinson. Fiquei tão descuidado e pouco centrado.” [Carta para William Plomer, datada de 29 de agosto de 1933];
"Estou bastante ocupado terminando a vida de Goldie Dickinson." [Carta para Siegfried Sassoon, datada de 6 de novembro de 1933].
A primeira das duas biografias de sua carreira literária foi concluída no prazo estabelecido, por volta do final de 1933. Meses depois, em 08 de setembro de 1934, em mais uma carta a Christopher Isherwood, ele revela sua satisfação com a jornada e o resultado:
"Eu gostaria de começar a escrever um pouco mais sobre coisas específicas. Estou muito feliz por ter feito o livro de Lowes Dickinson."
Escrever tal obra deu a ele "a chance não apenas de prestar uma homenagem ao amigo, mas também demonstrar como as amizades estavam no cerne da civilização que Cambridge representava para ele", como afirma David Bradshaw em The Cambridge Companion to E. M. Forster (2007). Em carta para Malcolm Darling, de 15 de setembro de 1924, Forster já havia manifestado: "King’s representa relações pessoais". E claro, o projeto também pode ser considerado uma tentativa de recuperação e cura após tantos golpes emocionais sucessivos.
Sua segunda incursão no gênero teria lugar somente vinte e três anos depois, quando sua tia-avó paterna Marianne Thornton foi rememorada no livro Marianne Thornton: A Domestic Biography (1956). Apesar dos nobres resultados, biografia não era um gênero que estava entre os favoritos de Forster. Para leituras sim, mas não para escrever. Seu amigo Dickinson e sua tia Marianne foram as únicas pessoas das quais ele não pôde "escapar", seja por motivos de afeto ou gratidão.
Dois projetos biográficos ficaram pelo caminho: a biografia do pintor Roger Fry, que chegou a ser discutida com suas irmãs, mas que, como vimos anteriormente no trecho do diário, Forster disse que não ia escrever e realmente não o fez; e um livro de cartas de T. E. Lawrence, que até progrediu bastante, mas foi eventualmente abandonado.
Semana G. L. D.
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