quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Pharos and Pharillon - Parte I

Após Alexandria: A History and a Guide, E. M. Forster não demorou muito para publicar um novo livro acerca da cidade onde viveu por três anos durante a Primeira Guerra Mundial. Enquanto estava em Alexandria, trabalhando como pesquisador voluntário na Cruz Vermelha, Forster publicava artigos e ensaios na imprensa local. Os temas mais comuns eram a história da cidade, suas impressões pessoais do local e as experiências ali vivenciadas desde 1915. 

Alguns dos artigos e ensaios escritos nessa época, além de outros concebidos posteriormente, seriam compilados num livro publicado em 1923, um ano depois de Alexandria: A History and a Guide. O autor o intitulou Pharos and Pharillon


Antecedentes

O Palácio do Khedive em Alexandria, 1900. Foto: Historic Maps/Ullstein Bild via Getty Images.

"Eu queria que você estivesse aqui comigo em Montazah esta manhã. É o palácio de campo do ex-Khedive e foi transformado em um hospital para convalescentes. Entre seus bosques de tamariscos e aléias de oleandros floridos, em seus recifes e fantásticos promontórios de pedras e areia, centenas de jovens estão brincando, pescando, montando burros, deitados em redes, andando de barco, nadando, ouvindo bandas. Eles andam de peito nu e pernas nuas, o azul de seus shorts de linho e o lilás pálido de suas camisas acentuando o esplendor marrom de seus corpos; e, junto ao mar, muitos deles passam metade dos dias nus e sem repreensões... É tão bonito que não consigo acreditar que não foi premeditado."

Era verão de 1916 quando E. M. Forster escreveu estas palavras ao amigo Goldsworthy Lowes Dickinson (1862-1932), cientista político e filósofo britânico. Goldie - como era chamado pelos mais íntimos - também era homossexual e deve ter apreciado a descrição da idílica cena, já que costumava ter paixões reprimidas por homens mais jovens. Para Forster, aquela certamente era mais uma cena alexandrina que despertava anseios há muito refreados e que efervesciam sua alma e corpo. Ele estava com 37 anos e ainda não tinha experimentado o sexo. 

Em correspondência com outro amigo, o poeta Edward Carpenter (1844-1929), o escritor não descreve uma pitoresca cena à beira-mar, mas sim desabafa sobre seus desejos febris:

"Não quero ficar resmungando, pois está tudo bem comigo, mas essa solidão física se prolonga por muitos meses, e com isso brota e cresce uma fastidiosidade miserável, de modo que, mesmo que a oportunidade pela qual anseio seja oferecida, temo que eu possa recusar. Em tal recusa, não há nada espiritual - é um sinal de que o espírito está sendo despedaçado. Tenho certeza de que algumas das pessoas decentes que vejo diariamente estariam dispostas a me salvar se soubessem, mas elas não sabem, não podem saber - fico sentado um pouco inclinado sobre elas e aí termina - exceto por imagens que me inflamam durante o sono. Sei que, embora você já tenha ouvido esse e outros casos mais tristes mil vezes antes, continuará sendo compreensivo, e é por isso que me conforta tanto. É horrível viver com um desejo insatisfeito, de vez em quando sufocando, mas nunca matando ou mesmo desejando. Se eu pudesse ter uma noite sólida, seria alguma coisa."

Militares e médicos durante a Segunda Guerra Mundial, em Alexandria, 1917. Foto: Delcampe.


Como nos conta Wendy Moffat em A Great Unrecorded History: A New Life of E. M. Forster, "o clima sexual de Alexandria era atraente, mas perigoso" e "em todos os lugares havia convites que não podiam ser aceitos". Em 1917, para aplacar a avidez que o consumia e registrar o que experienciava em Alexandria, Forster decidiu escrever - desde o ano anterior ele não se dedicava à prática. Mas não um romance, - o último havia sido publicado seis anos antes - e sim pequenos ensaios sobre ciscunstâncias e personalidades históricas da cidade, além de suas incursões e descobertas naquela que foi a capital do Egito por mil anos. 

Para fechar este primeiro trecho, um irônico detalhe: Montazah, aquele paraíso descrito em carta para o amigo Goldie, ficaria marcado para sempre na vida de Forster como o lugar onde, posteriormente, ele acabou fazendo sexo pela primeira vez. 


As publicações em jornais egípcios


Os artigos e ensaios escritos por Forster durante esse período foram publicados no The Egyptian Gazette e no The Egyptian Mail, jornais em língua inglesa, sediados no Cairo, que haviam se associado pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Enquanto o Mail era publicado pela manhã, o Gazette costumava sair à noite. A maioria absoluta dos escritos de Forster foi veiculada no The Egyptian Mail e faziam parte de uma série chamada Alexandria Vignettes. Ele os assinava simplesmente como Pharos

Aqui vamos nos deter aos ensaios e artigos que mais tarde iriam integrar Pharos and Pharillon, mas Forster escreveu e publicou vários outros ao longo dos anos em que esteve no Egito. A maior parte deles nunca foi republicada e hoje está longe dos olhos do público na coleção de jornais da British Library

O primeiro artigo saiu em 1917. Intitulado Eliza in Egpyt: Alexandria in 1779, Some Amusing Impressions, seria publicado em Pharos and Pharillon com o título simplificado de Eliza in Egypt. Forster narra a tumultuosa passagem de Eliza Fay (c.1755/1756-1816) pelo Egito no verão de 1779, a partir das célebres cartas desta dama viajante. Na gravura ao lado, ela foi retratada por Arthur William Devis. 

A primeira parte do artigo foi publicada no The Egyptian Gazette em 05 de abril, a segunda no dia 16 do mesmo mês e a última em 11 de maio. Em Pharos and Pharillon, o artigo está dividido em quatro partes. Uma informação adicional é que, em 1925, o escritor editaria o livro Eliza Fay's Original Letters from India (1779-1815), um compilado das correspondências sobre as quais havia se debruçado anteriormente. 

Eliza in Egpyt: Alexandria in 1779, Some Amusing Impressions foi o único publicado no The Egyptian Gazette. Todos os demais saíram nas páginas do The Egyptian Mail

A seguir, a cronologia das publicações originais destes artigos e ensaios, que posteriormente seriam selecionados para Pharos and Pharillon


The Den, em 30 de dezembro de 1917;

Alexandria Vignettes: Cotton from the Outside, em 03 de fevereiro de 1918;

Alexandria Vignettes: The Solitary Place, em 10 de março de 1918;

Alexandria Vignettes: Between the Sun and the Moon, em 31 de março de 1918;

Alexandria Vignettes: The Return from Siwa, em 14 de julho de 1918;

Lunch at the Bishops (publicado como a 1ª parte de St. Athanasius em Pharos and Pharillon), em 31 de julho de 1918;


- A Little Trip (publicado como Philo's Little Trip em Pharos and Pharillon), em 31 de agosto de 1918;

Alexandria Vignettes: Epifhany, em 06 de outubro de 1918.


As publicações na Inglaterra pós-guerra


Uma capa da The Athenaeum em 1846.
Em 1919, Forster já estava de volta à Inglaterra. A guerra havia terminado no final de novembro de 1918 e agora ele começava a retomar sua vida normal. Além de trabalhar em Alexandria: A History and a Guide, que seria lançado somente em 1922, escrevia sobre política externa e publicava várias críticas literárias. Mas uma ocupação dos últimos anos permanecia: escrever artigos e ensaios sobre Alexandria. 

Desta vez eles não seriam publicados em jornais egípcios, mas sim na revista literária The Athenaeum, sediada em Londres. Na época, o editor da revista era seu amigo John Middleton Murry (1889-1957). Assim como Forster, outros membros do Bloomsbury Group costumavam colaborar com The Athenaeum, como T. S. Eliot, Virginia Woolf, Lytton Strachey e Clive Bell. Na biografia de seu amigo Goldsworthy Lowes Dickinson, o escritor manifesta sua admiração pela revista. 

"Foi um prazer ler e uma honra escrever nesse periódico que conectava literatura e vida."

Em 25 de abril de 1919, The Poetry of C.P. Cavafy estampou as páginas da The Athenaeum. Aquele era o primeiro ensaio desta nova fase e mais tarde também estaria em Pharos and Pharillon. Vejamos agora a cronologia dos demais artigos e ensaios publicados nesse período:

- 2ª parte de St. Athanasius, em 23 de maio de 1919;

- Timothy The Cat & Timothy Whitebonnnet, em 25 de julho de 1919;

- Clement of Alexandria, em 08 de agosto de 1919;

- Pharos
  • 1ª parte:  28 de novembro de 1919;
  • 2ª parte: 05 de dezembro de 1919;
  • 3ª parte: 12 de dezembro de 1919.


A compilação


Por volta de 1922 - ao mesmo tempo em que trabalhava naquela que seria sua obra mais aclamada, A Passage to India - Forster começou a selecionar alguns dos artigos e ensaios que publicara nos últimos anos para editá-los em forma de livro. Era o momento de coletar parte dos escritos que haviam saído nas páginas dos jornais The Egyptian Gazette e The Egyptian Mail, além da revista literária The Athenaeum

O escritor selecionou aqueles que, em sua visão, tinham potencial para atingir um público mais amplo e dividiu o livro em duas partes. A primeira, Pharos, em referência ao histórico Farol de Alexandria, trata de eventos antigos da cidade. Já a segunda, Pharillon, aborda eventos contemporâneos. No introdução do livro, após apresentar resumidamente a formação do território alexandrino ao longo dos séculos, Forster nos explica a divisão do livro e consequentemente o título da obra: 


O Farol de Alexandria imaginado por Johann Bernhard Fischer von Erlach, 1721. Imagem: The Print Collector/Getty Images.

"Essa é a cena em que ocorrem as seguintes ações e meditações; aquele cume de calcário, com um país aluvial de um lado e portos do outro, sobressaindo do deserto, apontando para o Nilo; uma cena única no Egito, e os alexandrinos nunca foram verdadeiramente egípcios. Aqui africanos, gregos e judeus se uniram para formar uma cidade; aqui, mil anos depois, os árabes deixaram débil, porém duradoura, a impressão do Oriente; aqui, depois da decadência secular, surgiu outra cidade, ainda visível, onde trabalhei ou pareci trabalhar durante uma guerra recente. Pharos, o vasto e heróico farol que dominava a primeira cidade - sob Pharos, agrupei alguns eventos antigos; aos eventos modernos e às impressões pessoais, dei o nome de Pharillon, o obscuro sucessor de Pharos, que se agarrou por algum tempo à rocha baixa de Silsileh e depois deslizou sem ser observado para dentro do Mediterrâneo."

Para encerrar a primeira parte, o escritor escolheu um poema do amigo C. P. Cavafy (1863-1933), The God abandons Antony. Muito apreciado por Forster, esse mesmo poema já havia sido utilizado para encerrar a primeira parte de seu livro anterior, Alexandria: A History and a Guide. Em carta a Cavafy, datada de 31 de dezembro de 1922, ele conta detalhes sobre a organização de seu novo livro, incluindo a cronologia dos ensaios. Ao final, parece querer se desculpar por tamanha carga de informações (veja imagem da carta original na parte II deste post especial):

"Eu não pretendia infligir tudo isso a você quando comecei [a carta]. Não mencione isso (isto é, os detalhes) a ninguém, pois de outra forma o ponto principal do meu trabalho cansativo deixará de ser uma surpresa". 


Uma dedicatória


Mohammed el Adl, em 1918. Foto: King's College, Cambridge.
Desde o início, a intenção de Forster era dedicar Pharos and Pharillon a Mohammed el Adl (c.1899-1922), o condutor de bondes egípicio com quem manteve um relacionamento em Alexandria. Porém, acabou se deparando com algumas dificuldades para concretizar essa ideia. Em carta à amiga Florence Barger (1879-1960), com quem mantinha franca correspondência sobre vários assuntos, ele descreve seu dilema:
"A Hogarth Press está publicando algumas das minhas coisas alexandrinas neste inverno. Deve ser um livrinho agradável. Eu o dediquei 'A...', porque desejava que meu próximo livro fosse de Mohammed, seja qual for a relação dele comigo, mas agora não gosto da dedicatória. Durante toda a sua vida, eu o silenciei e acho que devo colocar seu nome por completo. 

No entanto, não quero perguntas de pessoas de fora sobre quem é Mohammed. Você tem algum conselho, ou melhor, opinião sobre o assunto? Eu poderia aludir a ele por alguma paráfrase literária, mas eu odeio isso. Embora me ocorram duas palavras em grego que se encaixam extraordinariamente bem ao livro e a ele."

Esta última possibilidade aventada prevaleceu. A enigmática dedicatória em grego para Mohammed el Adl significa "Para Hermes, líder das almas"
Superado o dilema, em 13 de fevereiro de 1923, o escritor já estava conferindo as provas do seu novo livro, que seria publicado pela Hogarth Press. 



A publicação


A primeira edição de Pharos and Pharillon.
Apresentado como o novo livro do autor de Alexandria: A History and a Guide e Howards End, Pharos and Pharillon foi oficialmente publicado em 15 de maio de 1923 pela Hogarth Press, editora dos amigos Leonard e Virginia Woolf. Inicialmente foram impressas 900 cópias, que devem ter se esgotado rapidamente, pois a segunda tiragem já saiu no mês seguinte. 

O livro não demorou para ser lançado nos Estados Unidos e em 30 de julho já chegava às livrarias americanas pela editora Alfred A. Knopf. Aparentemente, apenas algumas das edições americanas contam com o subtítulo A Novelist's Sketchbook of Alexandria Through the Ages

Em sua segunda edição, consta que cinco dos capítulos do livro foram reimpressos por cortesia de The Nation and the Athenaeum e que o restante não havia sido publicado anteriormente na Inglaterra, referindo-se aos capítulos da primeira parte, Pharos, que haviam sido veiculados apenas nos jornais egípcios. Uma observação necessária: The Nation and the Athenaeum foi o jornal político formado em 1921 a partir da fusão da The Athenaeum e do The Nation. 

As vendas foram positivas. Em carta a C. P. Cavafy, de 05 de julho de 1923, Forster demonstra estar satisfeito com o desempenho do livro e dá boas novas ao poeta greco-alexandrino. Ele informa que, com a publicação de alguns de seus poemas e do ensaio The Poetry of C. P. Cavafy em Pharos and Pharillon, o interesse em seu nome está cada vez maior (veja imagem da carta completa na parte II deste post). Na verdade, esta foi a primeira aparição da obra de Cavafy em língua inglesa, o que foi crucial para que o poeta se tornasse conhecido em todo o mundo. 

Assim como em Alexandria: A History and a Guide, o autor agradece a Cavafy pela permissão para publicar seus poemas e a George Valassopoulo pela tradução dos mesmos. 



Tradução para o português... de Portugal


Pharos and Pharillon nunca recebeu - e dificilmente receberá - uma tradução para o português brasileiro, mas existe uma tradução para o português de Portugal. Com o título Pharos & Pharillon - Uma Evocação de Alexandria, a tradução é assinada por Jorge Ayres Roza de Oliveira e foi lançada no país europeu em 1992, pela editora CotoviaAo lado, a capa da edição. 

Jorge Ayres também é responsável por uma tradução de Maurice editada em Portugal em 1989, igualmente pela Cotovia. Infelizmente, o acesso a obra não é tão simples. Os sites portugueses que vendem o livro não enviam para o Brasil. 

O livro completo, em inglês, está disponível no Project Gutenberg: Pharos and Pharillon




Fontes de pesquisa: 
An E. M. Forster Chronology (1993), de J. H. Stape;
Goldsworthy Lowes Dickinson (1934), de E. M. Forster;
Alexandria Still: Forster, Durrell, and Cavafy (1977), de Jane Lagoudis Pinchin;
A Great Unrecorded History: A New Life of E. M. Forster (2010), de Wendy Moffat.

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