segunda-feira, 13 de julho de 2020

Alexandria: A History and a Guide

O primeiro livro de E. M. Forster, Where Angels Fear to Tread, jamais publicado em português brasileiro, mereceu dois posts especiais aqui no blog em 2018. Agora chegou a vez dos demais livros que até o presente momento também não foram traduzidos para a nossa língua. 

As informações sobre a maioria dessas obras são bem escassas e creio que muitos nem fazem ideia de suas premissas básicas. Por isso, o propósito dessa série de posts é reunir o máximo de informações sobre tais livros ainda inéditos em português. As postagens seguirão a ordem cronológica de publicação das obras. Dessa forma, o tema do primeiro post não poderia deixar de ser Alexandria: A History and a Guide, lançado em 1922.


Antecedentes


Alexandria no início do século XX. Ao chegar à cidade em 1915, Forster se hospedou no Majestic Hotel (ao fundo).


O ano era 1915. Forster estava com 36 anos e seu último livro publicado havia sido a coleção de contos The Celestial Omnibus and Other Stories, quatro anos antes. Era quase metade da Primeira Guerra Mundial e, desde novembro, o escritor estava em Alexandria, cidade portuária do Mediterrâneo, no Egito. Lá, ele trabalhava como pesquisador voluntário no departamento de feridos e desaparecidos da Cruz Vermelha. Em hospitais militares, entrevistava combatentes feridos para determinar as situações de soldados desaparecidos nos terríveis meses de luta no estreito de Dardanelos, na Turquia.

A princípio, Alexandria não agradou Forster. Suas impressões não eram auspiciosas, principalmente porque ele acreditava que a grandeza e as glórias da cidade fundada por Alexandre, o Grande, haviam ficado no passado. Porém, em carta à sua mãe datada de 21 de novembro de 1915, o escritor parece tentar minimizar sua decepção: 
"Não dá para não gostar de Alexandria... porque é impossível não gostar de mar ou rochas. Mas, até onde eu sei, não é nada mais que isso; apenas uma cidade cosmopolita limpa ao lado de um pouco de água azul.” 

Porém, com o tempo, suas opiniões podem ter mudado um pouco, já que em março de 1916, ele chegou a promover conferências sobre a Alexandria antiga e moderna. Tais preleções foram as primeiras sementes de Alexandria: A History and a Guide, que como o próprio título antecipa, seria uma combinação da história da cidade com um guia prático para o visitante. 


A concepção


E. M. Forster em Alexandria, por volta de 1917.
Em outubro de 1918, com a guerra se aproximando do fim e o serviço na Cruz Vermelha diminuindo, Forster começou a escrever o guia, geralmente à noite, após o trabalho. Naquele mês, em correspondência com sua tia paterna Laura Forster, afirma: "não há muito para ver aqui, mas há muito em que pensar"Como relata Wendy Moffat em A Great Unrecorded History: A New Life of E. M. Forster, o escritor "trabalhou seriamente na pesquisa de um guia planejado para Alexandria, explorando o passado, já que o presente consistia numa vasta zona militar". Àquela altura ele já havia acordado a publicação da obra por uma firma local. 

O trabalho de campo o deliciava. Visitava múltiplos lugares como mesquitas, palácios e catacumbas, pesquisava em coleções de mapas e passeava de barco para ver o porto, um dos mais antigos do mundo. Talvez sua posição na Cruz Vermelha facilitou o deslocamento pela cidade, já que, apesar de não ter patente, desfrutava dos modestos privilégios de um oficial, como a meia-entrada nos novos bondes elétricos de Alexandria.

O ato de escrever também proporcionava considerável satisfação: 
"Eu nunca pensei em escrever outro livro e o mero fato de ser capaz de me concentrar é um prazer", diz ele em outra carta para sua mãe. 

Na busca por "um tipo superior de guia com muita história”, ele lê Plutarco e Antony and Cleopatra, de Shakespeare. Além disso, também era apreciador dos guias de viagens Baedeker Murray. O primeiro chega a ser citado em A Room with a View, logo no capítulo II, In Santa Croce with No Baedeker (Em Santa Croce sem o Baedeker). 

Evidentemente, os lugares que ele apresentava na obra também foram cenários de várias experiências pessoais. O despertar sexual foi uma delas. Na seção VII, Aboukir and Rosetta, de Guide, ele descreve Montazah Sta., o local onde fez sexo pela primeira vez. A fotografia acima foi tirada neste lugar, palco de um momento inesquecível para o autor. 
Montazah Sta. - Perto da estação fica o Summer Resort do ex-Khedive Abbas II, agora (1922) sendo restaurado e remodelado pelo rei Fouad. Se possível, deve-se conseguir permissão para entrar, pois o cenário é único no Egito e da maior beleza. A estrada leva por rosas, oleandros e pimenteiros. Dela, uma estrada vira à direita, subindo a colina até o Selamlik (quartel de homens), construído por Khedive em um estilo que provavelmente agradaria sua amante austríaca; no terraço em frente há um relógio solar e algumas armas. Do terraço, tem se uma vista para a baía circular com seus fantásticos promontórios e quebra-mares; a costa à direita é visível até Aboukir, cujo minarete espreita por um promontório distante; à esquerda estão os bosques de Montazah; embaixo, degraus precipitados, um desfile curvo. Belos passeios em todas as direções, e banho perfeito. No promontório à direita, há um quiosque, e nesse ponto existem alguns resquícios de prédios ou banheiros - fragmentos do antigo Taposiris Parva que ficava situado aqui; alguns deles formam viveiros de peixes naturais. Os bosques são Pines Maritimes, importados por Khedive da Europa, e na seção oeste, além da Casa dos Pombos, as árvores cresceram altas. Vários edifícios estão na propriedade; em um canto estão as fundações de uma enorme mesquita. Durante a recente guerra (1914-1919), Montazah tornou-se um Hospital da Cruz Vermelha; milhares de soldados convalescentes passaram por ali e nunca esquecerão a beleza e o conforto que lá encontraram.

Um bonde elétrico de Alexandria. As cúpulas do Majestic Hotel são novamente vistas ao fundo.


A guerra termina...


Com a guerra oficialmente encerrada em 11 de novembro de 1918, Forster avalia seu futuro, suas finanças e o retorno para casa. Ele volta à Inglaterra no final daquele mês, após três anos longe do lar. A estada ultrapassou em muito sua expectativa inicial, que era permanecer em Alexandria por apenas três meses. Apesar de incerto quanto à sua carreira, continua trabalhando no guia, além de escrever sobre política externa e publicar várias críticas literárias. 

Em julho de 1919, Forster já estava revisando a obra, concluindo-a nos meses seguintes. Em setembro, uma greve nacional dos ferroviários obriga o escritor a andar de bicicleta de Weybridge até Londres, para entregar uma cópia do original ao editor que estava prestes a embarcar para o Egito. O tempo passa e nada do livro ser impresso. Impaciente com a demora, ele cogita procurar um novo editor, apesar de já ter recebido um adiantamento de 10 libras pela obra, em agosto de 1919. 

Durante esse lento processo, Forster viaja para a Índia, onde passa a trabalhar como secretário particular do Marajá de Dewas, atendendo a um convite recebido ainda durante a guerra. Em outubro de 1921, deixa o posto e passa a viajar por algumas cidades indianas. Até que, em janeiro do ano seguinte, retorna à Alexandria, onde visita velhos amigos, entre eles G. H. Ludolf, que conhecera na Cruz Vermelha. De Alexandria viaja para o Cairo, onde reencontra o amigo - e por vezes amante - Mohammed el Adl, diagnosticado com tuberculose avançada e intratável. O escritor o leva ao balneário de Helouan, no Nilo, onde aproveita para conferir as provas de Alexandria: A History and a Guide, além de fazer passeios de burro no deserto e montanhas e frequentar cafés num clima delicioso. 


A publicação



Em março de 1922, Forster retorna à pátria e, em dezembro daquele ano, a obra é publicada no Egito por Alexandria: Whitehead Morris Limited. Uma informação recorrente encontrada nas páginas de vendas dessa primeira edição é de que as cópias são raras porque a maior parte da tiragem foi destruída pelo fogo. Contudo, não obtive maiores detalhes sobre esse incêndio. 

Uma segunda edição do livro foi lançada somente muitos anos depois, em 1938, com patrocínio da Sociedade Arqueológica Real de Alexandria. O autor chegou a assinar 250 exemplares para os membros da organização. 

Enquanto a primeira edição foi dedicada ao amigo G. H. Ludolf, anteriormente citado, a segunda foi oferecida a C. P. Cavafy, que em suas palavras era um "grego de nascimento, alexandrino de espírito e um grande poeta.” 

Forster não se preocupou em procurar um editor para publicá-lo no Reino Unido, mas independentemente disso, o livro chegou ao mercado editorial britânico antes de sua morte. 

Ao lado, a capa da primeira edição da obra. 



Uma história e um guia


A primeira parte do livro, History, é dividida em cinco seções, que abordam períodos históricos da cidade: Greco-Egyptian Period, Christian Period, The Spiritual City, Arab Period e Modern Period. Os temas abordados incluem literatura, arte, filosofia, ciência, religião, arquitetura e a cidade moderna, além de figuras históricas como Alexandre, o Grande, Cleópatra e Napoleão Bonaparte. 

Vila de Alexandria, extraído de Les Observations de plusieurs singularitez, de Pierre Belon du Mans, Paris, 1554.


Já a segunda parte, Guide, é composta por oito seções: From the Square to Rue Rosette, From the Square to Ras-El Tin, From the Square to the Southern Quarters, From the Square to Nouzha, From the Square to Ramleh, From the Square to Mex, Aboukir and Rosetta e The Lybian Desert. Forster guia os visitantes por praças, monumentos, mesquitas, mosteiros, museus, palácios, jardins, cemitérios, catacumbas, entre outros. O livro conta com 20 mapas e plantas, além de uma árvore genealógica dos Ptolomeus. 


O prefácio 

Nada melhor que conferir o prefácio assinado pelo próprio E. M. Forster para absorver um resumo da obra da forma mais fiel possível:

Este livro consiste em duas partes: uma história e um guia.

A "História" tenta (ao estilo de um quadro vivo) organizar as atividades de Alexandria durante os dois mil duzentos e cinquenta anos de sua existência. Começando com a figura heróica de Alexandre, o Grande, ela inspeciona a dinastia dos Ptolomeus e, em particular, a trajetória da última deles, Cleópatra; segue-se um relato da literatura e da ciência ptolomaicas, e encerra com esse período esplêndido, ao qual dei o título de "Greco-Egípcio". O segundo período, chamado de "Cristão", começa com o governo de Roma e traça as sinas do cristianismo, primeiro como um poder perseguido e depois como um perseguidor: tudo está perdido em 641, quando o Patriarca Ciro trai Alexandria pelos árabes. Um interlúdio vem a seguir - “A Cidade Espiritual” - que medita na filosofia e na religião alexandrinas, tanto pagãs quanto cristãs: parecia melhor segregar esses assuntos, em parte porque eles interrompem o principal curso histórico, em parte porque muitos leitores não estão interessados ​​neles. A História é retomada no "Período Árabe", que não tem importância, apesar de durar mais de 1.000 anos - de Amr a Napoleão. Com Napoleão começa o "Período Moderno", cuja principal característica é a construção da cidade que agora vemos sob os auspícios de Mohammed Ali; e o quadro vivo é concluído, tão bem quanto possível, com um relato dos eventos de 1882 e com suposições sobre futuros desenvolvimentos municipais.

A “História” está escrita em seções curtas e, no final de cada seção, há referências à segunda parte - o “Guia”. Nestas referências, a principal utilidade do livro depende das notas especiais que o leitor deve tomar: elas podem ajudá-lo a vincular o presente e o passado. Suponha, por exemplo, que ele tenha lido sobre Pharos em History: no final da seção, ele encontrará referências a Fort Kait Bey, onde ficava o Pharos, a Abousir, onde há uma réplica em miniatura, e ao Coin Room no Museu, onde aparece nas moedas de Domiciano e Adriano. Ou ainda, suponha que o destino trágico de Hipácia o tenha impactado: no final, haverá referências ao Caesareum, onde Hipácia foi assassinada, e à Wady Natrun, onde residiam os monges que a assassinaram. Ou as vitórias britânicas de 1801: ele será remetido ao país sobre o qual nossas tropas marcharam, ao Monumento Abercrombie em Sidi Gaber e a uma lápide no pátio do Patriarcado Grego. Os "pontos turísticos" de Alexandria, por si só, não são interessantes, mas fascinam quando os abordamos no passado, e foi isso que tentei fazer com o duplo arranjo de História e Guia.

O "Guia" não exige introdução. Ele foi escrito do ponto de vista prático e deve ser usado no local. É acompanhado por mapas e plantas. A cidade é dividida em seções e o visitante, em todos os casos, começa na Praça. Outras seções tratam dos arredores e da região circundante, até Rosetta, a leste, e Abousir, a oeste. Na transliteração de nomes árabes, preferi o sistema francês: existem três sistemas em inglês, cada um apoiado por um departamento governamental rival, de modo que o francês parece ser o caminho mais seguro, e se eu não o segui rigidamente, estou apenas acompanhando, embora a uma distância respeitosa, o exemplo do município de Alexandria. Aqui e ali, alguma História entrou no Guia - notadamente no caso de Aboukir, cuja sina, embora dependente da de Alexandria, apresenta características próprias.

- Livro completo, em inglês, disponível no Project Gutenberg: Alexandria: A History and a Guide.


Os agradecimentos 

Tão interessante quanto ler o prefácio é conferir os agradecimentos de E. M. Forster.

Muitos amigos também me ajudaram, entre os quais eu particularmente agradeceria aos seguintes: Sr. George Antonius, por sua assistência com aqueles edifícios interessantes, mas pouco conhecidos, as Mesquitas de Alexandria; Sr. M. S. Briggs por sua ajuda na seção de Rosetta; Dr. A. J. Butler, pela permissão para reproduzir duas plantas das Igrejas Natrun; Sr. C. P. Cavafy (imagem ao lado), pela permissão para publicar um de seus poemas, e Sr. G. Valassopoulo, pela tradução do mesmo; o Rev. R. D. Downes por sua ajuda em Aboukir; O Sr. R. A. Furness por suas traduções de versos de Calímaco e outros poetas gregos; M. E. Jondet, Diretor de Portos e Luzes, por me levar para ver sua fascinante descoberta, o Porto Pré-histórico, e por colocar à minha disposição sua coleção incomparável de mapas e paisagens, duas das quais reproduzi; e, acima de tudo, Sr. G. H. Ludolf, a quem esse livro é dedicado e sem a ajuda do qual nunca seria concluído. Jamais esquecerei a gentileza que recebi em Alexandria e, de maneira alguma, endossarei o julgamento de meu antecessor, o poeta Gelal ed Din ben Mokram, que monstruosamente afirma que:

O visitante de Alexandria nada recebe em termos de hospitalidade
Exceto um pouco de água e uma conta do Pilar de Pompeu.
Aqueles que desejam tratá-lo muito bem vão tão longe quanto oferecer um pouco de ar fresco
E dizer a ele onde fica o farol.
Eles também o instruem sobre o mar e suas ondas,
Adicionando uma descrição dos grandes barcos gregos.
O visitante não precisa aspirar a receber algum pão,
Para uma pedido desse tipo, não há resposta.

Circunstâncias que eu não pude controlar atrasaram a publicação do livro, mas, com a ajuda de amigos, tentei atualizar o “Guia” o máximo possível.


Capas pelo mundo 



Fontes de pesquisa
An E. M. Forster Chronology (1993), de J. H. Stape;
A Great Unrecorded History: A New Life of E. M. Forster (2010), de Wendy Moffat.

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