Este é um post um pouco diferente do habitual. Diariamente, durante minhas pesquisas sobre as últimas novidades envolvendo E. M. Forster (que infelizmente não são muitas), tenho me deparado com artigos e matérias sobre a capacidade premonitória e a atualidade do conto The Machine Stops, publicado em novembro de 1909 na The Oxford and Cambridge Review.
Mais de 110 anos depois estamos em plena pandemia do coronavírus e os holofotes tem se voltado cada vez mais para esse profético conto distópico, que antecipou tecnologias, comportamentos e incertezas. Será que finalmente esta obra ignorada de Forster ganhará mais prestígio e reconhecimento? Temos que esperar para ver. Porém, a finalidade deste post é traçar um paralelo simples e direto entre aquilo que o escritor imaginou mais de um século atrás e o que testemunhamos hoje e agora.
Todos os trechos do conto citados no post foram extraídos de A Máquina Parou, seguido de Paisagem com Risco Existencial, com tradução de Teixeira Coelho, publicado por Itaú Cultural e editora Iluminuras em 2018.
O avô do tablet?
Comecemos com a tecnologia palpável. Forster previu a existência do tablet? Tudo indica que sim.
"Mas passaram-se bem uns quinze segundos antes que a placa redonda que tinha nas mãos começasse a brilhar. Uma fraca luz azulada apareceu, aos poucos transformando-se num púrpura-escuro, e agora já podia ver a imagem do filho, que vivia no outro lado da Terra, e ele também podia vê-la."
É interessante notar que as adaptações do conto não são fiéis à descrição de uma placa redonda que cabe nas mãos de Vashti. A maioria delas optou por representar a cena com os dois personagens principais se comunicando por uma grande tela semelhante a um televisor, como no gif abaixo.
Na primeira parte do conto, A nave aérea, Vashti resiste a fazer uma visita ao filho Kuno. Por que empregar tempo e esforços em algo tão dispensável se ela poderia vê-lo virtualmente? Guardadas as devidas circunstâncias em que a história se desenvolve, alguma semelhança com o crescente número de pessoas que prioriza o contato virtual em detrimento do presencial?
“Quero que você venha me ver.”
Vashti observou o rosto dele na placa azulada.
“Mas eu posso vê-lo!”, ela exclamou. “O que mais você quer?”
“Não quero vê-la através da Máquina”, Kuno disse. “Quero conversar com você mas não através desta Máquina irritante.”
[...] Ela respondeu que dificilmente teria tempo para uma visita."
Tudo ao alcance da mão
Cena do episódio The Machine Stops (1966), da série Out of the Unknow (1965-1971), da BBC.
"Depois acendeu a luz e a visão de seu quarto, tomado pelo brilho e adornado com botões elétricos, a fez sentir-se melhor. Havia botões e interruptores por toda parte — botões para pedir comida, música, roupas. Havia um botão para o banho quente, bastava pressioná-lo para que uma banheira de mármore (falso) se erguesse do chão, cheia até a borda com um líquido morno e sem cheiro. Havia o botão do banho frio. Havia o botão que trazia literatura. E, claro, havia os botões com os quais se comunicava com os amigos. Embora o quarto não contivesse mais nada, estava conectado a tudo que lhe era importante no mundo."
Estamos rodeados de botões, seja em nossas próprias casas, no trabalho ou nos aparelhos tecnológicos que usamos - até já estamos passando dessa fase, vide a moderna Alexa. As facilidades mais corriqueiras estão ao alcance de um simples botão e passamos o dia teclando no celular enquanto nos comunicamos por aplicativos de mensagens. Como Vashti, também podemos "pedir comida, música, roupas" em questão de segundos, por meio de serviços de delivery.
"Você tem 100 mensagens novas"
Em seu "pequeno quarto, hexagonal como a célula de uma colmeia", Vashti pode acionar o isolamento total a qualquer momento para que ninguém se comunique com ela. A torrente de mensagens que ela recebe quando sai do isolamento remete a algo muito familiar ao homem do século XXI e que dispensa maiores comentários.
"O gesto seguinte de Vashti foi desligar o interruptor do isolamento — e todas as mensagens acumuladas nos três minutos anteriores desabaram sobre ela."
O narrador também diz que Vashti "conhecia milhares de pessoas, sob certos aspectos as relações humanas tinham-se desenvolvido enormemente", o que nos lembra as redes sociais da atualidade. Em seguida, ela responde as mensagens de uma forma que não é estranha ao ser humano dos dias de hoje:
"Respondeu à maioria das perguntas com irritação, característica cada vez mais comum naqueles tempos acelerados."
O Zoom em 1909
"O antigo e canhestro sistema de reuniões públicas presenciais há muito fora abandonado, nem Vashti nem sua audiência afastavam-se mais de seus respectivos quartos. Ela falava sentada em sua poltrona e eles em suas poltronas a ouviam, bem o bastante, e a viam, bem o bastante."
Em tempos de pandemia e isolamento social, essa passagem do conto se mostra ainda mais profética. É assombroso que isso tenha sido imaginado e escrito há mais de 110 anos.
"As pessoas eram todas muito parecidas umas às outras no mundo todo mas a atendente da nave aérea, talvez por causa de seus deveres excepcionais, desenvolvera algo fora do comum. Muitas vezes ela tinha de dirigir-se aos passageiros de modo direto e isso dera a seus modos uma certa aspereza e originalidade. Quando Vashti se afastou dos raios de sol e se desequilibrou, dando um grito, a atendente fez um gesto incivilizado: estendeu a mão para ampará-la.
“Como se atreve!”, disse a passageira. “Você passou dos limites!”
A atendente ficou confusa e pediu desculpas por não a ter deixado cair. As pessoas nunca tocavam umas nas outras. Esse costume tornara-se obsoleto, devido à Máquina."
Tem como não relacionar imediatamente essa aversão ao toque com o momento que vivemos atualmente? Enquanto não nos tocamos para evitar uma doença infecciosa, o "vírus" de The Machine Stops é aquele da impessoalidade, da frieza e da distância, produzido pelo modo de vida oferecido pela Máquina.
Sintomas de crise
Cena do curta The Machine Stops (2009).
Quando a Máquina começa a parar, começa a surgir uma onda de boatos, acompanhada de uma espécie de resgate do sentimento religioso - anteriormente abandonado - desta vez direcionado ao Livro da Máquina, que continha instruções para resolver todo tipo de problema.
"Ouvia-se uma conversa histérica sobre “as medidas” ou a “ditadura provisória” e os habitantes de Sumatra foram chamados a familiarizarem-se com a operação das centrais elétricas quando na verdade a central elétrica estava na França. Na maioria dos lugares, o pânico imperava e as pessoas gastavam suas energias erguendo orações ao Livro, prova tangível da onipotência da Máquina. O terror assumia tons diferentes — por vezes ouviam-se boatos esperançosos de que o Dispositivo Regenerador estaria quase reparado ou que os inimigos da Máquina haviam sido dominados, que novos “centros nervosos” estavam sendo implantados e fariam todo o trabalho de modo ainda mais fantástico do que antes."
É de conhecimento geral que em tempos de crise observa-se um crescimento exponencial do apego à fé religiosa e da proliferação de boatos, inverdades e radicalismos.
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