terça-feira, 12 de junho de 2018

O 1º livro de Forster - Parte I

A primeira edição da obra.
Where Angels Fear to Tread ocupa o posto de primeiro romance publicado de E. M. Forster, mas por pouco este título não pertence à uma outra obra do escritor. Quando passou dez meses na Itália, durante o inverno de 1901 e 1902, Forster idealizou um romance passado em Florença, cujo personagens incluíam a protagonista Lucy Beringer, sua prima, senhorita Bartlett e as senhoritas Lavish e Alan. 

O primeiro rascunho, denominado Old Lucy, acabou sendo abandonado pelo escritor, que, em dezembro de 1903, começou um novo esboço, o The New Lucy Novel. Perseverou neste durante um ano, até deixá-lo de lado para se concentrar em projetos que resultariam em seus dois primeiros romances publicados: Where Angels Fear to Tread (1905) e The Longest Journey (1907). Aqueles primeiros rascunhos se transformariam num romance acabado somente anos depois, após uma série de versões: tratava-se, é claro, de A Room with a View, que acabou sendo lançado somente em 1908, quando Forster tinha 29 anos. Em 1952, durante entrevista à revista literária inglesa The Paris Review, Forster foi questionado sobre qual de seus romances veio-lhe primeiro à mente. Ele respondeu: "Parte de A Room with a View. Fui até a metade e depois deve ter havido um obstáculo."

Independente do que tenha sido esse obstáculo, ele adiou o desenvolvimento da história de Lucy, mas oportunizou a criação de Where Angels Fear to Tread. Não se tem conhecimento exato sobre quando Forster começou a escrever esta obra, porém sabe-se que ele a concluiu no final do outono de 1904, tendo completado seus dez capítulos no período de apenas algumas semanas. O local onde ele a terminou é emblemático: Harnham, um subúrbio da cidade de Salisbury, no condado de Wiltshire. Emblemático porque foi nesse lugar que ele também arrematou seus romances subsequentes, embora tivessem sido iniciados em outros locais. 


Com a mãe, em 1902, ano em que estiveram na Itália.
No volume 2 de sua obra A Companion to E. M. Forster, Sunil Kumar Sarker afirma que, após escrever as últimas palavras de Where Angels Fear to Tread, Forster praticamente não fez alterações substanciais no resultado obtido. Foram necessários somente pequenos toques correcionais, pois durante todo  o processo de escrita ele estava muito confiante sobre todo o curso da história, do começo ao fim. Foi um romance escrito com facilidade, como se Morgan Forster soubesse exatamente para onde estava indo e o que estava fazendo. 

A inspiração para o romance surgiu quando o escritor tinha apenas 22 anos, durante aquela primeira viagem para a Itália. Em companhia materna, Forster passou por algumas atribulações nesta visita: torceu o tornozelo e quebrou um braço em situações distintas e passou grande parte do tempo tentando recuperar itens perdidos. A Itália poderia ter ficado marcada negativamente como o palco de adversidades e contratempos, mas isso não aconteceu. Pelo contrário: foi uma fonte de criatividade pujante, que resultou em romances, contos e um fascínio perpétuo pelo país. O próprio escritor ratificou isso ao falar com o público italiano numa conferência: 

"[Durante a visita] o elemento criativo foi libertado. Seu país me ensinou muito", professou. 

O embrião da história de Where Angels Fear to Tread surgiu casualmente. Em Morgan: A Biography of E. M. Forster, Nicola Beauman conta que o romancista escutou uma conversa entre duas senhoras inglesas na cidade de Siena, região da Toscana, cujo objeto principal era uma terceira dama inglesa que havia se casado com uma italiano bem mais jovem e de nível social abaixo do dela. De acordo com as interlocutoras, o caso não terminou nada bem. Essa história ficou gravada na mente do escritor e acabou se tornando a base de seu primeiro romance. 

O mais conhecido biógrafo de Forster, P. N. Furbank, sustenta a mesma versão de Beauman acerca da inspiração extraída de um fragmento de fofoca entre inglesas em terras italianas, porém, acrescenta mais uma possibilidade. Para ele, outra fonte de inspiração concebível seria um incidente ocorrido com uma família de nome Trevelyan. Em 1890, uma senhora de meia-idade chamada Florence Trevelyan, tia do historiador inglês George Macaulay Trevelyan, casou-se com um médico siciliano chamado Salvatore Cacciola e se estabeleceu na cidade de Taormina. A união recebeu forte desaprovação de sua família, com exceção do sobrinho, que costumava fazer visitas amigáveis ao casal na Sicília. Para Furbank, é bem possível que George Trevelyan tenha mencionado a história a Forster. Ele cita ainda uma conhecida do escritor, Maimie Aylward, cujo segundo casamento provavelmente também pode ter influenciado a imaginação do mesmo.


Breve sinopse de um livro ainda inédito no Brasil

Algumas capas de edições lançadas em outros países.
Em uma viagem à Toscana com sua jovem amiga e companheira de viagem, Caroline Abbott, a viúva Lilia Herriton se apaixona pela Itália e por um bonito italiano, muito mais jovem que ela e decide ficar no país. Furiosa, a família do marido morto envia o cunhado de Lilia à Itália para evitar uma aliança imprópria, mas ele chega muito tarde. Lilia se casa com o italiano e, no devido tempo, fica novamente grávida. Quando ela morre dando à luz seu filho, os Herritons consideram seu direito e seu dever viajar para Monteriano para obter a custódia do bebê e criá-lo como um inglês.

- Livro completo, em inglês, disponível no Project Gutenberg: Where Angels Fear to Tread


A questão do título

A primeira página do manuscrito "Monteriano".

Quando começou a escrever a obra, Forster cogitou intitulá-la The Rescue, nome que, sem dúvida, se conectava convenientemente ao enredo. O escritor também se referia informalmente à obra como "romance Gino", em referência ao personagem italiano. Porém, o nome grafado por Forster na capa do manuscrito foi Monteriano, a cidade fictícia na região da Toscana, onde se passa a maior parte da ação do romance. Seu editor na William Blackwood & Sons não aprovou e insistiu para que que o escritor escolhesse um novo título. A solução encontrada? Vejamos nas palavras do próprio E. M. Forster:
"Where Angels Fear to Tread deveria ter sido intitulado 'Monteriano', mas o editor achou que o título não era comercial. Foi Dent (Professor E. J. Dent) quem deu-me o atual título." (The Paris Review, nº 01, 1953).

Edward Joseph Dent - um musicólogo, escritor, professor e crítico musical - já havia sido creditado anteriormente por Forster como um amigo que o ajudou "de todas as maneiras possíveis a entrar em contato com a Itália". O título sugerido e devidamente acatado deriva de um verso muito conhecido do poema An Essay on Criticism, do inglês Alexander Pope: "For fools rush in where angels fear to tread" (Porque os tolos correm para onde os anjos temem pisar). 

Alice, a mãe do escritor, que não era mulher escrupulosa em questão de dar suas opiniões, deixou bem claro que o novo título não era de seu agrado. Na verdade, ela estava profundamente descontente e seu filho inclinado a concordar com ela. No entanto, o nome prevaleceu pelo bem do marketing e das vendas. 


Os manuscritos do livro

Veja abaixo, 11 páginas do manuscrito de Where Angels Fear to Tread, ainda com o nome Monteriano grafado. Clique em cada miniatura para ampliar.







Créditos dos manuscritos digitalizados: © The Provost and Scholars of King’s College, Cambridge and The Society of Authors as the E. M. Forster Estate.


Referências ao livro na entrevista à The Paris Review


47 anos após ter publicado Where Angels Fear to Tread, E. M. Forster concedeu uma entrevista à prestigiosa revista literária The Paris Review, na qual faz algumas alusões ao seu primeiro livro. Confira estes trechos pinçados logo abaixo. Recentemente, publiquei no blog a entrevista completa traduzida por Brenno Silveira. Para lê-la, clique aqui.

Entrevistadores: Alguns críticos fazem objeção à maneira com que o senhor aborda situações de violência. O senhor concorda com essas objeções
Forster: Acho que resolvi o problema satisfatoriamente em Where Angels Fear to Tread. Quanto aos demais, eu não sei. [...]

Entrevistadores: Como dá nome a seus personagens?
Forster: Geralmente encontro o nome de saída, mas nem sempre. [...] Herriton foi por mim inventado. [...] Where Angels Fear to Tread deveria ter sido intitulado "Monteriano", mas o editor achou que o título não era comercial. Foi Dent (Professor E. J. Dent) quem deu-me o atual título.

Entrevistadores: Até que ponto admite moldar seus personagens em pessoas reais
Forster: Todos nós gostamos de fingir que não usamos pessoas reais, mas a verdade é que usamos. [...] Philip Herriton foi moldado à forma do Professor Dent. Este sabia disso e mostrou-se interessado em sua própria evolução. Usei vários turistas.

Entrevistadores: Poderia dizer-nos algo sobre o processo de transformar um ser real num de ficção?
Forster: Um truque útil é o de olhar para uma determinada pessoa com olhos entreabertos, descrevendo, por completo, certas características. Restam-me cerca de dois terços de um ser humano e posso começar a trabalhar. Não se almeja uma semelhança que jamais poderia ser obtida porque um homem só é ele mesmo no meio das circunstâncias particulares de sua vida, e não no meio de outras. Portanto, referir-me a Dent quando Philip está em dificuldades com Gino, ou perguntar a uma Miss Dickinson o modo como deveria Helen comportar-se com um filho ilegítimo, seria o mesmo que arruinar a atmosfera e o romance. Quando tudo vai bem, o material original não demora a desaparecer, e um personagem que pertence ao livro e a nenhum outro lugar, emerge.

Entrevistadores: Existe algum de seus personagens que possua suas próprias características?
Forster: Rickie mais do que qualquer outro. Philip também. E Cecil (do A Room with a View) tem algo de Philip. 




Fontes de pesquisa: British Library (Collection items)
Ensaio sobre a Crítica (1810), de Alexander Pope, tradução do Conde de Aguiar; 
A Companion to E.M. Forster, Vol. 2 (2007), de Sunil Kumar Sarker; 
Morgan: A Biography of E. M. Forster (1993), de Nicola Beauman; 
E. M. Forster: A Life (1977-1978), de P. N. Furbank; 

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