sábado, 13 de março de 2021

Goldsworthy L. Dickinson VI

 A Controvérsia ou Em Defesa de E. M. Forster


"Não tentei excluir fatos sobre ele com os quais não simpatizasse ou que pudessem diminuir sua reputação. Fazer isso seria prestar-lhe um péssimo elogio, pois não se importava em nada com sua reputação, nem se deslumbrava com a reputação dos outros. Ele admirava uma biografia não quando tratava do assunto com um espírito reverente, mas quando o tornava vivo." (trecho do prefácio do autor)

 

afirmação de Forster de que não suprimira fatos sobre Dickinson com os quais não simpatizava dificilmente pode ser questionada. Mas quando se fala em reputação, uma crítica recorrente à biografia pode ser trazida à baila. Aqueles eram tempos em que a sociedade considerava - e grande parte, irracionalmente, considera até hoje - a homossexualidade um demérito, uma nódoa. Ao não versar abertamente sobre a orientação sexual do amigo, o escritor excluiu um fato que diminuiria a reputação do biografado perante a maior parte do público, dado o contexto histórico de condenação ao "amor que não ousa dizer seu nome".  

Forster deve ser censurado por isso? Logicamente que não. Em carta de 10 de julho de 1932, menos de um mês antes de sua morte, o próprio Dickinson deixou bastante claro que não gostaria que tal questão fosse levada a público. Seu leal amigo, indiscutivelmente, respeitou tal desejo e trabalhou dentro das restrições determinadas pelo próprio biografado. 

"O que quero dizer é que estou enviando a autobiografia para Dennis Proctor, 5 Peel St, Church St, W.8. Mas eu gostaria que você, não ele, tomasse qualquer decisão sobre isso. Meu sentimento atual é que, se algo fosse publicado (sobre o qual não tenho nenhum julgamento), a parte do sexo deveria ser omitida. Não se pode confiar que as pessoas ainda (nem nunca) sejam decentes a respeito dessas coisas e, de qualquer forma, minhas relações ainda estão vivas. Lembre-se de que minhas irmãs não viram esta autobiografia e eu não desejo que vejam, exceto em uma forma bem censurada. Devo, infelizmente, deixar tudo isso a seu critério, mas talvez você também deva consultar Dennis, embora eu queira que a decisão final seja sua. Há outros MSS que pedi a May para lhe enviar, mas duvido que haja algo que deva ser publicado e você tem plena permissão para destruir ou fazer o que quiser."

Sir Philip Dennis Proctor, fotografado por Walter Bird
em 1949. | Foto: National Portrait Gallery, Londres.
Dennis Proctor (1905-1983) foi um membro do King's College, Cambridge, a quem Dickinson também confiou as já citadas Recollections. Mais de duas décadas depois, Forster forneceu a ele a totalidade dos escritos não publicados, sem restrições sobre sua publicação final. 

Apenas em 1973, mais de quarenta anos após a morte de Dickinson, sua autobiografia finalmente chegou aos olhos do público sob o título The Autobiography of G. Lowes Dickinson and Other Unpublished Writings. Na introdução, Proctor, o editor da obra, diz:

"Pode-se bem imaginar como ele [Forster] deve ter se irritado com a necessidade de descrever a vida de seu amigo sem mencionar o mais raro sobre ela, a experiência quase contínua ao longo de uma vida de amor apaixonado por outro ser humano, simplesmente porque o outro ser humano sempre foi alguém do mesmo sexo."


Em carta para J. R. Ackerley, de 10 de janeiro de 1933, Forster refletiu sobre seu próprio legado póstumo e fez breve referência às omissões: 

"Eu gostaria que alguém escrevesse sobre mim depois que eu morresse, mas eu iria querer que tudo fosse contado, tudo, e até agora há tão pouco. Goldie, mesmo condenado a omissões, parece ter bem mais."

Mas Forster realmente não faz nenhuma alusão, por mais implícita que seja, à homossexualidade de Dickinson? Sim, ele faz, e algumas delas não deixam margem para dúvidas: 


Bathing (1911), de Duncan Grant, amigo de E. M. Forster e integrante do Bloomsbury Group. | Imagem: Tate.

"Embora ele nunca tenha sido atraído por mulheres no sentido apaixonado, todas as suas emoções mais profundas sendo voltadas para os homens, sua vida teria sido vazia e sem conforto sem elas. Ele encontrou nelas - isto é, em algumas mulheres - uma paciência e uma nobreza não descobertas em outros lugares [...]" - capítulo 08, The World of Matter (1884-1887), parte 2. 

"Devotado a [Ferdinand] Schiller, mas constantemente separado dele, e em dúvida se sua devoção era correspondida, Dickinson sofreu por muitos anos de uma sensação de frustração que o sensível compreenderá" - capítulo 09, From Mysticism to Politics (1887-1893), parte 3. 


Neste trecho a seguir, Forster cita Dickinson diretamente: 

"Acho que poucos jovens ganharam menos de Paris do que eu. Pois para tirar alguma coisa disso, parece ser essencial abordá-lo pelo caminho das mulheres, e esse não era um caminho para mim. Eu me divirto, ao olhar para trás, ao lembrar de uma visita a um dos locais de dança (seria o Moulin Rouge?) e do meu tédio pelo pouco tempo que pude ficar. E também, como uma velha prostituta muito feia veio até mim uma vez, em algum restaurante, e começou a me acariciar. Eu simplesmente fugi." - capítulo 08, From Mysticism to Politics (1887-1893), parte 3. 


Oscar P. Eckhard em seu primeiro ano em Cambridge.
Foto: Autobiography of G. Lowes Dickinson, and Other
Unpublished Writings, Duckworth, 1973.
 
Neste outro, refere-se de forma velada a um dos relacionamentos amorosos de Dickinson. Ênfase também para a palavra sublimado:

"Mais ou menos na época da morte do pai, ele conheceu Oscar P. Eckhard, que então estava no King's. Com Eckhard, com sua mãe e com outros de sua família, ele permaneceu em contato até o fim de sua vida - na verdade, raramente pode ter havido uma vida em que tão pouco se perdesse. Muito precisava ser sublimado, mas esse era um processo que ele esperava e que facilitou o melhor que pôde. Quando ele olhou para trás, podia dizer com verdade que seus relacionamentos pessoais tinham sido duradouros, embora às vezes ficasse chocado com sua austeridade. Eles estavam enraizados em sua filosofia idealista. E a filosofia para ele não era apenas um assunto de estudo, era a fonte de toda conduta, como o era para seu homem ideal, o Sócrates platônico." - capítulo 10, The Socratic Method (1893-1914), parte 6.



Em A Great Unrecorded History: A New Life of E. M. Forster, Wendy Moffat descreve impecavelmente a engenhosidade de Forster ao lidar com as limitações impostas: 

"[...] O maior problema narrativo era que a vida de Goldie fora distorcida tanto pela sublimação sexual quanto pela renúncia sexual - e a causa dessa tensão dentro dele não poderia ser revelada na biografia. Assim, Morgan deu forma a um gênero inteiramente novo, uma biografia que era verdadeira, se não exatamente honesta. Em sua escrita, como em suas relações com Bob e May, ele começou a usar o silêncio criativo para contar uma história que teria sido totalmente destruída por ser rotulada ou nomeada. Assim como Adela Quested quando se sentiu diminuída quando concordou em se tornar a esposa de Ronnie - 'Ao contrário do pássaro verde ou do animal peludo, ela agora estava rotulada'. Ao compor Goldsworthy Lowes Dickinson, Morgan deixou espaço para seus leitores 'sensíveis' descobrirem a fonte da infelicidade de seu amigo. Trabalhando dentro das restrições estabelecidas pelo próprio Dickinson, Morgan foi bastante franco. Ele pintou o quadro de um sujeito que vivia inteiramente em um mundo de homens, que tinha amizades masculinas apaixonadas e nunca pensou em casamento."


Minha conclusão pessoal é que é injusta e equivocada a acusação de omissão deliberada da orientação sexual do biografado. Forster criptografou a homossexualidade de Dickinson quase inteiramente, mas em cumprimento à vontade do estimadíssimo amigo. 


Erotic Embrace (circa 1950), de Duncan Grant. | Imagem: Tate.


Semana G. L. D.
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