sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Maurice & Dickie Barry

 Dickie Barry (Adrian Ross Magenty).
Um personagem que se destaca nas cenas deletadas de Maurice (1987) é Dickie Barry. O jovem é sobrinho do doutor Barry, o velho amigo e vizinho da família Hall e também estudou em Sunnington, a escola frequentada por Maurice antes de ingressar em Cambridge. No livro, o personagem é citado indiretamente pela primeira vez no capítulo 04, que se passa no Dia de Entrega dos Prêmios em Sunnington. Logo ficamos sabendo que Maurice "esnobou" o sobrinho do doutor:

Uns poucos metros dali, ele avistou doutor Barry, o vizinho, que percebeu o olhar e exclamou de um modo alarmante:
“Parabéns, Maurice, por seu triunfo. Arrasador! Eu bebo a seu sucesso nesta xícara”, ele a esvaziou, “de chá extremamente ruim.”
Maurice riu e dirigiu-se a ele, sentindo-se um pouco culpado; pois estava com um peso na consciência. Doutor Barry lhe pedira para travar amizade com seu pequeno sobrinho, que entrara na escola aquele semestre, mas ele nada fizera — não era o que se fazia. Ele queria ter tido mais coragem agora que era tarde e sentia-se mais adulto.

Esta cena não consta entre as deletadas com a participação de Dickie Barry. É sobre elas que falaremos a seguir, fazendo um comparativo com o livro. Na primeira cena deletada, o personagem chega à casa da família Hall numa noite de diversão e jogos. Estão presentes as irmãs de Maurice, Ada e Kitty; a mãe, senhora Hall; Chapman, estudante de Cambridge e colega de Maurice; além de Gladys Olcott, outra personagem que também teve suas cenas deletadas. 



Falando na obra, a única referência ao momento da chegada de Dickie aparece no capítulo 29 - aliás, todas as cenas seguintes também estão presentes nesse capítulo. 

"Aquele era o convidado cuja chegada na noite anterior [Maurice] achava que seria uma amolação. 


A próxima cena deletada traz Maurice indo acordar Dickie no dia seguinte à sua chegada:



Enquanto na cena acima é a senhora Hall quem encoraja Maurice a chamar Dickie, no livro esse papel coube à tia Ida. Vejamos:

“Maurice!”, chamou a tia em meio ao alvoroço.
“Sim.”
“O moço está atrasado.”
Recostando-se na cadeira, ele gritou “Dickie!” para o teto: hospedavam, como favor, o jovem sobrinho do doutor Barry durante o fim de semana.
“É inútil, ele nem mesmo está dormindo aqui em cima”, disse Kitty.
“Vou subir.”
[...] Subiu com os passos de um homem mais velho e teve de tomar fôlego no alto. Abriu os braços. A manhã estava magnífica — feita para os outros: para eles, as folhas farfalhavam e o sol se infiltrava pela casa. Bateu na porta de Dickie Barrie e, como pareceu não adiantar, descerrou-a. 
O rapaz, que fora a um baile na noite anterior, continuava dormindo. Estava deitado com pernas e braços descobertos. Sem pudor, deixava-se abraçar e penetrar pelo sol. A boca estava aberta, a parte de baixo do lábio superior tinha um toque dourado, o cabelo se desmanchava em resplendor infinito e o corpo era de um âmbar delicado. Ele teria parecido belo a qualquer um, mas, para Maurice, que podia alcançá-lo por meio de dois caminhos, o moço era o desejo encarnado.
“Já passa das nove”, ele disse, assim que recobrou a fala.
Dickie resmungou e puxou a roupa de cama até o queixo.
“Café-da-manhã... Acorde.”
“Faz quanto tempo que está aqui?”, perguntou, abrindo os olhos, que era tudo que se podia ver agora e que se fixaram nos de Maurice.
“Um pouco”, respondeu, depois de uma pausa.
“Sinto muito.”
“Pode acordar tão tarde quanto quiser: só achei que não devia perder esse dia maravilhoso.”


A terceira cena é uma conversa entre Maurice e Dickie, onde parece surgir mais intimidade entre os dois. O momento é interrompido por Kitty. 


Já no livro, é tia Ida quem entra na sala.

Maurice entregou-se ao júbilo. Seu sangue fervia. Não conseguiu acompanhar a conversa. Mesmo isso o favoreceu, pois quando disse “O quê?”, Dickie juntou-se a ele, no sofá. Maurice passou o braço por trás dele... A entrada de tia Ida pode ter evitado maiores conseqüências, mas achou ter visto reação nos olhos cândidos do rapaz.


Na última cena com Dickie Barry, o personagem chega à noite de algum lugar desconhecido e é recebido por Maurice que alimenta esperanças de ter algo a mais com o rapaz naquela ocasião. 


A cena foi retratada de forma bem semelhante à original do livro:

Encontraram-se mais uma vez - à meia-noite. Maurice não se sentia feliz agora, pois durante as horas de espera sua emoção tornara-se física.
“Tenho a chave da porta da frente”, disse Dickie, surpreso de encontrar seu anfitrião de pé.
“Eu sei.”
Houve uma pausa. Os dois ficaram sem jeito, relanceando um para o outro e temendo sustentar o olhar.
“A noite está fria lá fora?”
“Não.”
“Quer que eu providencie alguma coisa antes de você dormir?”
“Não, obrigado.”
Maurice dirigiu-se ao comutador e acendeu a luz da escada. Então, apagou a luz do saguão e correu atrás de Dickie, passando à sua frente sem fazer barulho.
“Este é meu quarto”, ele sussurrou. “Quero dizer, em geral. Elas me tiraram daqui por sua causa”, acrescentou. “Durmo aqui sozinho.” Estava consciente de que as palavras fugiam ao seu controle. Tendo removido o sobretudo de Dickie, ficou parado segurando-o, sem dizer nada. A casa estava tão silenciosa que podiam ouvir as mulheres respirando nos outros aposentos.
O rapaz também não disse nada. As possibilidades são infinitas, mas ocorreu que ele compreendeu perfeitamente a situação. Se Hall insistisse, não teria começado uma briga, mas preferia ser deixado em paz: era assim que se sentia.
“Estou no andar de cima”, arquejou Maurice, esmorecendo. “No sótão acima... Se quiser alguma coisa... Fico toda noite sozinho. Como sempre.”
O impulso de Dickie fora de trancar a porta após a saída de Maurice, mas sufocou-o por parecer-lhe uma atitude covarde, e despertou com o soar do sino do desjejum, com o sol batendo no rosto e a mente revigorada.

É uma pena que as cenas de Dickie Barry tenham sido cortadas na edição final. Certamente o motivo principal foi a duração do filme que já estava suficientemente longa (a versão lançada tem 140 minutos). O ator que interpreta o personagem é Adrian Ross Magenty. Como todas as suas cenas foram deletadas no corte final, obviamente ele não é creditado no longa. Cinco anos depois, o ator finalmente pôde se assistir numa adaptação forsteriana, também da Merchant Ivory Productions: foi em Howards End (1992), no qual interpretou Tibby Schlegel, o irmão das protagonistas Margaret e Helen. 

Os irmãos Schlegel: Tibby (Adrian Ross Magenty), Margaret (Emma Thompson) e Helen (Helena Bonham Carter).

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