quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O Natal em Howards End

Ruth Wilcox (Vanessa Redgrave) e Margaret Schlegel (Emma Thompson) vão às compras de Natal em Howards End (1992)  Imagem: IMDb


Dentre os seis romances de E. M. Forster, Howards End é o que apresenta referências mais expressivas à comemoração do Natal. A maioria delas está no capítulo X e diz respeito a algo muito comum nessa época do ano: compras. Numa manhã cinzenta, Margaret Schlegel e Ruth Wilcox fazem uma peregrinação por lojas em busca de presentes para parentes e amigos. Os trechos abaixo foram retirados da edição da editora Globo de 2006, com tradução de Cássio de Arantes Leite. 

Ansiosa pela amizade da sra. Wilcox, Margaret é honrada com um convite para acompanhá-la nas compras de Natal:

O momento crucial veio com uma mensagem: a srta. Schlegel a acompanharia nas compras? O Natal estava próximo e a sra. Wilcox via-se atrasada com os presentes. Passara mais alguns dias de cama e tinha de compensar o tempo perdido. Margaret aceitou, e às onze horas de uma desalentada manhã começaram, a bordo de um cupê.

“Antes de mais nada”, começou Margaret, “devemos fazer uma lista para ticar o nome das pessoas. Minha tia sempre faz assim, e esta neblina pode ficar mais forte a qualquer momento.

Tem alguma idéia?”

“Pensei em irmos à Harrod’s ou às Haymarket Stores”, disse a sra. Wilcox, sem muita animação.

“Lá certamente se encontra de tudo. Não sou uma boa compradora. O barulho é tão atordoante, e sua tia está absolutamente certa, a pessoa deve fazer uma lista. Pegue meu caderninho, então, e escreva seu próprio nome no alto da página.” (pág. 105) 


Neste próximo trecho, o narrador nos conta algumas impressões de Margaret Schlegel sobre o Natal. Convenhamos que suas visões permanecem atualíssimas.  

Andaram de loja em loja. O ar estava branco e quando desceram de sua condução foi como tocar em moedinhas geladas. Aqui e ali passavam por um borrão acinzentado. A vitalidade da sra. Wilcox estava em baixa nessa manhã, e era Margaret quem se decidia por um cavalo para essa garotinha, uma bonequinha de nega maluca para aquela outra, para a esposa do reverendo uma bandeja aquecedora de cobre. “Sempre damos dinheiro para os criados.” “É, sei, sim, é muito mais fácil”, respondeu Margaret, mas sentiu o impacto grotesco do invisível sobre o visível, e viu emergindo de uma manjedoura esquecida em Belém aquela torrente de moedas e brinquedos. A vulgaridade imperava. As tavernas, à parte sua usual exortação contra a reforma pela temperança, convidavam os homens: “Participem de nosso clube do ganso natalino”* — uma garrafa de gim, ou duas, dependendo da contribuição. Um cartaz com uma mulher embriagada anunciava o teatrinho natalino, e diabinhos vermelhos, que haviam voltado a aparecer nesse ano, levavam a melhor sobre os cartões de Natal. Margaret não era uma idealista atroz. Não desejava que aquela enxurrada de comércio e propaganda fosse reprimida. Era apenas a ocasião para aquilo que a deixava pasma de assombro ano após ano. Quantos daqueles compradores hesitantes e vendedores cansados se davam conta de que era um evento sagrado que os levava a estar ali reunidos? Ela o percebia, ainda que visse a coisa do lado de fora. Não era uma cristã no sentido aceito; não acreditava que Deus houvesse agido entre nós como um jovem artesão. Essas pessoas, ou a maioria delas, acreditavam e, se perguntadas, o afirmariam em palavras. Mas os sinais visíveis de sua crença eram a Regent Street ou a Drury Lane, alguma lama remexida, algum dinheiro gasto, alguma comida preparada, consumida e esquecida. Inadequado. Mas, em público, quem expressará o invisível adequadamente? É a vida privada que oferece o espelho para o infinito; a troca pessoal, e apenas isso, que sempre aponta para uma personalidade além de nossa visão cotidiana. 

“Não, de modo geral, gosto do Natal”, explicou. “No seu jeito desastrado, de fato traz a paz e a boa vontade. Mas, ai, está mais desastrado a cada ano.”

“Verdade? Estou habituada apenas aos natais no campo.”

“Geralmente estamos em Londres, e nos atiramos ao jogo com vigor — cânticos na igreja, a desastrada refeição do meio do dia, o desastrado jantar para as criadas, seguido de árvore de Natal e dança de crianças pobres, com canções de Helen. A sala de visitas se presta muito bem a isso. Pomos a árvore no toucador e puxamos uma cortina quando as velas estão acesas, e com o espelho por trás dá um efeito muito bonito. Gostaria que tivéssemos um toucador em nossa próxima casa. Claro, a árvore tem de ser muito pequena, e não dá para pendurar os presentes nela. Não; depositamos os presentes numa espécie de paisagem rochosa feita de papel pardo amassado.”  (págs. 106, 107 e 108) 

* Temperance reform: movimento puritano contra o consumo de álcool; Christmas goose club: tradição inglesa de contribuir com um fundo semanal por algum tempo antes do fim do ano para a compra de um ganso e garrafas de bebida, no Natal. (n.e.)


Aqui, continuam as descrições da azáfama londrina e as reflexões de Margaret sobre o momento. 

O aspecto da cidade era satânico, as ruas mais estreitas oprimindo como se fossem galerias de uma mina. A neblina não causava estrago algum ao comércio, pois este fervia, e as janelas iluminadas das lojas exibiam multidões de clientes. Era antes uma turvação do espírito, que, buscando forças dentro de si mesmo, dava com uma escuridão ainda mais desesperadora. Margaret quase falou uma dúzia de vezes, mas alguma coisa a sufocava. Sentia-se mesquinha e desconfortável e suas reflexões sobre o Natal tornavam-se cada vez mais cínicas. Paz? A ocasião podia proporcionar outras dádivas, mas haveria um único londrino para quem o Natal significasse um tempo pacífico? A ansiedade pela animação e pelos preparativos arruinaram essa bênção. Boa vontade? Teria ela visto um único exemplo dentre as hordas de compradores? (págs, 110 e 111)

Confira a adaptação destas cenas no filme de 1992. O vídeo foi postado no canal do blog no YouTube

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