terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Epílogo de Maurice

"O capítulo após sua união, em que Maurice repreende Clive, é o único final possível ao livro. Nem sempre pensei assim, nem assim pensaram outras pessoas, e fui encorajado a escrever um epílogo. Tomara a forma de Kitty encontrando dois lenhadores, alguns anos depois, mas fiquei profundamente insatisfeito. Epílogos são para Tolstói. O meu parcialmente falhou porque a data de ação do romance é 1912, e 'alguns anos mais tarde' os faria mergulhar na Inglaterra transformada da Primeira Guerra Mundial." (Nota final de Maurice, tradução de Marcelo Pen, Globo, 2006).

É de amplo conhecimento que E. M. Forster se inspirou no relacionamento do poeta e filósofo Edward Carpenter com George Merrill para criar seu romance Maurice, publicado somente em 1971, após sua morte. O próprio autor nos conta isso na nota final do livro, escrita em setembro de 1960. Neste mesmo texto, ele revela que chegou a escrever um epílogo para a obra, que foi posteriormente descartado. Tal epílogo evidencia ainda mais a inspiração no casal de amigos de Millthorpe, pois retrata Maurice e Scudder vivendo no campo, num retirado estilo rural, assim como Carpenter e Merrill (foto abaixo).


O trecho que abre o post foi pinçado dessa nota final escrita por Forster, na qual ele é bem claro quanto aos motivos que o levaram a rejeitar o epílogo. Pessoalmente, não poderia concordar mais com a decisão de descartar esta conclusão adicional. É maravilhoso saber que Maurice e Scudder estão felizes no campo, mas a forma como o texto foi concebido apaga um pouco o brilho do desfecho. O final original, sem epílogo, é bem superior e mais impactante. 

O epílogo de Maurice foi publicado pela primeira vez somente em 1999, numa edição da editora André Deutsch Ltd., de Londres. Integrante da série The Abinger Edition, foi editada por Philip Gardner. Traduzi o epílogo descartado e compartilho a seguir. Não sou tradutor profissional, por isso o resultado não ficou perfeito. Mas tentei ser o mais preciso possível. Você pode conferir o original clicando aqui

"O machado está posto à raiz das árvores ..." Este texto, expressando tão bem sua própria situação, surgiu espontaneamente na mente de Kitty. Fora induzido por um som distante de corte de madeira, mas ela não tinha consciência disso. Estava andando de bicicleta sozinha por um país exaurido. Todas as folhas foram arrancadas dos galhos por um vendaval, e agora o vento soprava em monótono triunfo sob um céu marrom claro. Com esse tempo, o mundo parecia vazio de coisas boas; o calor se foi, o gelo e a neve, esplêndidos à sua maneira, ainda não chegaram. E Kitty não tinha nada para fazer, não sabia para onde estava indo e não ligava. Havia deixado a estrada principal porque ela se transformou em plantações e a cansou; a pista era inclinada, mas contra o vento, e ela ainda tinha que pedalar ao longo de uma superfície pior. Depois de mais uma hora, ela voltaria para a pousada onde estava hospedada e tomaria seu chá solitariamente. 

“O machado está posto... portanto toda árvore que não dá bons frutos é cortada... mas ninguém quer ficar estéril”, pensou ela. “Ninguém pede para ficar zangado e triste, ou cinco anos mais velho. Alguns de nós poderíamos ter produzido frutos se tivéssemos sido nutridos adequadamente.” E suspirando ela pedalou, enquanto o som do corte ficava mais nítido. Aos vinte e sete, Kitty era tão velha quanto a maioria das mulheres aos quarenta; a juventude não encontrou lugar de descanso em seu corpo ou mente. Desde que Violet Tonks se casou - essa foi a crise, ao invés da desgraça de seu irmão - ela perdeu seu vigor, não compareceu mais a concertos, palestras sobre higiene, etc., ou se preocupou com a melhoria do mundo; mas cuidava de sua mãe ou ajudava os Chapman exaustivamente. De vez em quando ela "surpreendia", como costumava chamar; devia ter umas “férias verdadeiras sozinha”, como na ocasião presente. Mas ela nunca voltava para casa renovada. Ela não poderia colidir com sua própria personalidade.

“Há saída por aqui?”, ela gritou para o lenhador.

Ele acenou com a cabeça e respondeu com uma voz independente “Se você vir meu companheiro, senhorita, peça a ele para trazer uma serra, por favor”.

“Sim, se eu o vir”, disse Kitty, que sentia que uma liberdade tinha sido tomada dela. Mas a fala interrompeu seus pensamentos, e quando o machado recomeçou, foi como um som humano.

Meia milha depois, ela viu o segundo homem. Ele estava empilhando toras ao lado de uma clareira. Ela o chamou, e quando ele se aproximou, ela reconheceu seu irmão. Ele parecia um trabalhador comum - não tão esbelto quanto aquele que a abordara. A calça estava puída, a camisa aberta no pescoço: ele começou a abotoar com dedos duros e morenos quando ela gritou “Maurice”. Mas por baixo do exterior palpitava um novo homem - mais duro, mais centrado, em boa forma como sempre, mas formado em um molde novo, onde músculos e queimaduras de sol procedem de uma saúde interior.

"Como, você nunca está na Inglaterra ... vergonhoso ... abominável..." Ela não falou o que sentia, mas o que sua educação ordenava, e como se houvesse entendido, ele não respondeu, nem a olhou no rosto. Ele parecia estar esperando - como a floresta - até que suas repreensões estéreis terminassem. “Nenhum de nós sente sua falta”, ela continuou. “Nós nem mesmo mencionamos você. Arthur nos diz para nem perguntarmos o que você fez. Não direi a mamãe que vi você, porque ela já teve o suficiente para suportar. Um homem mais adiante me deu uma mensagem para você sobre uma serra, ou eu não teria falado de outra forma. "

"O que viu?" Estas foram as únicas palavras que ele pronunciou: sua voz era mais áspera, mas ainda baixa e muito charmosa.

"Eu não sei e não me importo", disse ela, ficando com raiva. Maurice pegou duas serras, ouviu o barulho do machado e se afastou carregando a menor. Foi sua última visão dele. A estrada serpenteava com o vento e, antes que ela recuperasse a paciência, estava navegando bem lá embaixo. A noite ficou mais sombria e as sebes das árvores adquiriram uma aparência granulada, como se a ferrugem estivesse se formando nelas e anunciando a extinção da Terra.

Enquanto o chá aquecia sua mente, Kitty começou a se lembrar do sumiço de seu irmão. Ela nunca tinha colocado isso para fora. “Algo terrível demais” foi sugerido por seu cunhado, que mais sabia, e estivera em comunicação secreta com Clive. Clive não quis se pronunciar e recusou-se terminantemente a ver a sra. Hall e ser interrogado por ela. As duas famílias se separaram - ainda mais rapidamente porque a velha Sra. Durham e Pippa espalharam o boato de que Maurice havia especulado na Bolsa de Valores. Isso irritou os Hall, pois o menino, assim como o pai, sempre fora muito cuidadoso, e Kitty teve permissão para escrever uma de suas cartas incisivas; ela se lembrava de suas palavras muito claramente agora, na solidão desta pousada em Yorkshire.

Mas qual foi a “coisa horrível”? Por que um jovem rico e não espiritual deveria cair ao mar como uma pedra e desaparecer? - cair sem preparação ou despedida? Na noite do maravilhoso pôr-do-sol ele não havia voltado - para o aborrecimento de tia Ida, agora morta, que desejava um passeio de motocicleta, e na manhã seguinte ele não estava no escritório, nem em um jantar com Clive. Além disso, ela não sabia de nada, pois a masculinidade havia intervindo. Era assunto de homem, Arthur havia sugerido: as mulheres podem chorar, mas não devem pedir para entender, e ele as advertiu contra a comunicação com a Polícia. Ela chorou devidamente e consolou a pobre mãe, mas a emoção já havia morrido ali - muitos anos, e Oh, o que foi? Ela ansiava por saber. Que força poderia ter empurrado seu irmão para o deserto?

Então ela pensou "Ele não está sozinho lá: ele está trabalhando sob o comando daquele outro homem", e com um flash, mas sem o menor choque, a verdade foi revelada a ela. “Ele deve gostar muito de seu companheiro, deve ter desistido de nós por sua causa, imagino que eles estejam praticamente apaixonados.” Parecia-lhe uma situação muito estranha, da qual nunca tinha ouvido falar e que era melhor não mencionar, mas as variedades de desenvolvimento são infinitas: não parecia uma situação repugnante, nem que a sociedade devesse proibir. Maurice parecia feliz e orgulhoso, apesar das roupas baratas e do frio. Ela se lembrou de como o rosto dele havia mudado quando ela falou da serra: foi a única observação que o comoveu: abuso, súplicas, sermões, tudo era impotente contra seu desejo de trabalhar adequadamente com seu amigo. "O que viu?" Nada mais importava, e ele a havia deixado.

Bem, e ela não se importou. Ele poderia se quisesse. Ela nunca se importou com ele, e não se importava agora, mas ela o entendia, e poderia finalmente pensar nele sem irritação. Ela percebeu por que ele sempre a repeliu, apesar das generosidades superficiais, por que ela e sua irmã, e mesmo ela [  ], viviam em estado de guerra. Quais foram seus pensamentos agora? E à medida que a noite avançava e o tapete se erguia com o vento, os pensamentos de Kitty tornaram-se menos sociológicos. Em particular, ela começou a pensar no amigo desconhecido como um ser humano e a se interessar por ele. Ela sentia que, embora mais comum que seu irmão, ele poderia ser mais legal com uma mulher, ela gostava de seu corpo forte e solto e da suavidade de seus olhos corajosos, e queria vê-lo novamente. Ele era "o tipo de pessoa em que todos se encontram" - então, com felicidade inconsciente, ela expressou a natureza de Alec e se pegou perguntando à senhoria sobre os homens que trabalhavam na floresta por onde ela passara de bicicleta. Sua pergunta foi vaga, assim como a resposta da senhoria: havia tantos bosques, ela sugeriu, e tantos homens, e alguns vieram e outros foram.

“Deve estar muito frio lá em cima, sozinho”, disse Kitty, cuja ideia de amor, embora correta, permaneceu murcha: pois Maurice e Alec naquele momento não estavam nem solitários nem frios. Seu horário favorito para conversar havia chegado. Sentados em um galpão perto de seu trabalho - dormir ali provou-se mais seguro - eles compartilharam em sussurros uma avaliação dos acontecimentos do dia, antes de adormecerem. Kitty foi incluída e eles decidiram deixar o emprego atual e procurar trabalho em um novo distrito, caso ela contasse à Polícia, ou voltasse. “Lá estaremos seguros”, eles pensaram, no brilho da masculinidade. Eles nunca estariam. Mas eles estavam juntos no momento, permaneceram em desintegração e combinaram o trabalho diário com o amor; e quem pode esperar mais?

0 comentários:

Postar um comentário

Todos os visitantes do blog E. M. Forster Brasil são muito bem-vindos, assim como seus comentários acerca dos conteúdos aqui publicados. As opiniões expressas nos comentários são de total responsabilidade de seus autores.