sábado, 31 de março de 2018

Mais sobre Howards End gay

Kyle Soller (Eric), Samuel H. Levine (Adam) e Andrew Burnap (Toby), em cena de The Inheritance. Foto: Simon Annand.


Quando publiquei o post introdutório sobre a peça teatral The Inheritance, ainda eram escassas as informações sobre a inspiração extraída de Howards End, afinal, a produção ainda não havia estreado nos palcos. Com a divulgação de vários reviews nas últimas horas, agora é possível ter uma ideia bem mais clara a respeito do assunto e associar os elementos da peça e do romance. 

The Inheritance é, essencialmente, um drama sobre a relação entre a geração de gays devastada pela AIDS e a geração que a sucedeu. Eric Glass (Kyle Soller), o personagem equivalente à Margaret Schlegel, é um advogado de bom coração por volta dos 30 anos, que mora num amplo apartamento alugado em Manhattan, Nova York. Seu namorado, Toby Darling (Andrew Burnap), é um escritor hedonista e de língua afiada, que está adaptando seu aclamado romance de estreia, supostamente autobiográfico, para o palco da Broadway. Inicialmente, as coisas parecem estar indo bem para Eric e Toby. Eles ficam noivos e o apartamento do casal é um centro movimentado para o seu espitituoso grupo de amigos gays. 

Andrew Burnap (Toby) e Samuel H. Levine (Adam) em bela foto de Tristam Kenton.


Quando dois homens entram em suas vidas, a realidade começa a se transformar. Toby cancela seu casamento com Eric, após ficar obcecado por Adam (Samuel H. Levine), um jovem aspirante a ator e estrela de sua nova peça. Eric, por sua vez, inicia uma amizade duradoura com Walter (Paul Hilton), um homem gay mais velho e enfermo, morador do mesmo prédio e que, evidentemente, é o personagem correspondente a Ruth Wilcox. Ele tem um relacionamento de 36 anos com o bilionário do ramo imobiliário, Henry Wilcox (aqui até o nome do personagem original do romance foi preservado), interpretado por John Benjamin Hickey. 

Antes de falecer, Walter pede a Henry que dê a casa de campo do casal a Eric. Trinta anos antes, contra a vontade de seu parceiro, Walter tinha feito desta casa um verdadeiro refúgio para gays moribundos no auge da crise da AIDS, acolhendo homens doentes, estigmatizados e abandonados. Assim como no romance de Forster, a casa de campo simboliza esperança e compaixão ao longo da história. Após a morte de Walter, Henry e seus filhos materialistas não honram o seu derradeiro pedido. 

Outra semelhança óbvia é que, assim como acontece com os Schlegel, Eric é obrigado a deixar o apartamento onde mora, porque o contrato de aluguel está no fim e não será renovado. Os amigos liberais do jovem advogado não ficam muito satisfeitos quando ele é romanticamente atraído pelo bilionário Henry. A partir daí, há batalhas entre o idealismo liberal e o individualismo conservador, com as preocupações de Forster sendo amplificadas. São representadas questões de classe, liberdade, propriedade, a idéia de legado e, acima de tudo, a necessidade de conexão entre os seres humanos.

O próprio E. M. Forster aparece como personagem no palco, sob o seu segundo nome, Morgan. Ele é interpretado por Paul Hilton (foto ao lado), que também dá vida a Walter na peça. Como um escritor cósmico, ele estimula homens gays a contar suas histórias e descobrir suas próprias verdades, surgindo também também como mentor e representante de uma geração de homossexuais. 

Algo impressionante a respeito da peça é que ela dura cerca de incríveis sete horas (!), sendo dividida em duas partes. Avaliando os reviews publicados até o momento, pode-se dizer que a maioria é de críticas mistas, sendo que um das mais empolgadas é a do crítico teatral Dominic Cavendish, publicada no site do jornal The Telegraph. Para ele, The Inheritance é "talvez a peça americana mais importante do século até agora." 

Algumas curiosidades:
- Originalmente, o dramaturgo Mattew Lopez pretendia escrever uma adaptação bem mais fiel de Howards End, ainda que ambientada no universo gay, mas com o passar do tempo a ideia sofreu alterações, resultando em The Inheritance;

- Além de Margaret Schlegel, Ruth e Henry Wilcox, Leonard Bast possui um personagem correspondente na peça. Ele assume a forma de Leo (também interpretado por Samuel H. Levine), um garoto de programa, sem teto e viciado em drogas, que um solitário Toby Darling convida para uma noite de sexo em sua casa;

- A primeira linha de Howards End ("Podemos muito bem começar com as cartas de Helen para sua irmã") foi adaptada na peça da seguinte maneira: “Podemos muito bem começar com as mensagens de voz de Toby";

- Na peça, o grande e significativo olmo de Howards End é substituído por uma cerejeira, no jardim da casa de campo de Walter e Henry;

Em determinada cena, um personagem critica E. M. Forster por não ter publicado Maurice em vida, acusando-o de não ter sido "suficientemente corajoso";

- Vanessa Redgrave (que interpretou Ruth Wilcox no filme de 1992) dá vida à Margaret, uma mãe que tardiamente aprendeu a amar seu filho gay e que agora lamenta tê-lo rejeitado. Ela é a única personagem feminina da peça.

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